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À moda de um velho chefe mafioso de voz rouca, o Tija me intimou com uma sugestão a escrever um post sobre as tais três coisas de que alguém pode gostar. Discordo de um ponto do seu post: no meu caso, não há paixão secundária; pelo contrário, há uma que se sobressai.
Mas vamos lá. Até uns 14 anos, provavelmente funcionava assim:
1 - Música (Chico Buarque, mais tarde Legião Urbana e Pink Floyd; antes, para minha vergonha, sambas-enredo)
2 - Literatura (Rubem Fonseca, Machado de Assis e, bem no começo, Monteiro Lobato)
3 - Cinema (Chaplin, cinema americano semi-mainstream pós-década de 50)
Comecei a gostar de Chico Buarque na quarta série, quando ouvi "Construção" num churrasco na casa de amigos do papai em Petrópolis. Naquela época a vitrola lá de casa ainda existia; achei na coleção da minha mãe uns cinco ou seis discos do rapaz e passava as tardes, após voltar da escola, trancado num quarto semi-vazio de casa, ouvindo-os e reouvindo-os. Pensando no assunto, lamento não ter sido capaz de deixar o Chico de lado de vez em quando e explorar os demais discos da casa: eu teria conhecido melhor Beatles e Rolling Stones, por exemplo, bem antes do que de fato o fiz. Mas havia um lado bom nessa minha tara: enquanto meus colegas de turma ouviam Pennywise, NOFX e sabe-se lá o que mais, eu ficava na minha MPB e me tornava capaz de discordar do grupo com desenvoltura e simplicidade. Legião e Pink Floyd vieram mais tarde, e mais ou menos ao mesmo tempo, na sexta ou sétima série. Gostava muito de Legião quando o Renato Russo morreu, mas acho que àquela altura eu já estava embriagado de Radiohead.
Meu gosto por cinema nessa época era basicamente moldado no do meu pai. De quinze em quinze dias, minha irmã e eu íamos para o seu apartamento passar o fim de semana, e quase sempre passávamos na Video & Cia. de Copacabana ou na locadora do Estação Cinema 1 para pegar alguns filmes. O número variava de acordo com a promoção do momento, mas nunca era menos de três, cada um escolhendo um. E víamos tudo, em geral um na noite de sexta, um na noite de sábado e o derradeiro na manhã de domingo. Até aquele momento, era raro eu ir sozinho ao cinema.
A partir dos 15 anos, aconteceu o seguinte:
1 - Cinema (Qualquer coisa, desde que passasse no Estação Icaraí)
2 - Música (Radiohead, Velvet, Napster)
3 - Literatura (Joyce!)
Talvez seja injusto esse terceiro lugar para os livros: até eu passar para a faculdade, nada me marcou tanto quanto ler Ulisses. Mas, tirando esse livro, não me lembro de outro que tenha lido no período.
O cinema era outra história. Um belo dia, fazendo um trabalho em grupo com três meninas, fiquei de saco cheio das fofocas e resolvi dar uma volta para espairecer. Acabei topando com o Estação Icaraí e vi Mera coincidência, aquele com Robert DeNiro e Dustin Hoffman e roteiro de David Mamet. Pouco depois, fui ao mesmo cinema assistir a Atirem no pianista, do Truffaut, e Trinta anos essa noite, do Louis Malles. E decidi fazer uma roleta russa cinematográfica: toda semana, não importava o filme que estivesse passando, lá estava eu no Estação Icaraí. Quem conhece o circuito Estação pode pensar que não é uma roleta russa tão perigosa assim, mas a falta de público pra cinema menos comercial em Niterói faz com que o Estação às vezes apele: foi lá que vi Entrando numa fria e As loucas aventuras de James West, e meu compromisso com o cinema acabou quando eles exibiram Meu querido marciano. Mas continuo gostando muito de lá, e ir ao Estação Icaraí sozinho, sentar na minha poltrona habitual (última fila, penúltima cadeira) e ficar olhando as pessoas entrarem na sala antes de as luzes se apagarem me dá um prazer nostálgico que não me é habitual.
Quando entrei na faculdade, a literatura provavelmente ultrapassou a música, principalmente por causa de Pynchon, Fante e Faulkner. Mas foi uma mudanças pequena. A mudança grande veio um pouco depois, e a situação atual é:
1 - Clarice
2 - Literatura
3 - Cinema
O Tija, que já não gostou do meu post sobre Simplesmente amor, vai detestar esse momento escancaradamente brega. Mas nada pode ser feito. A Clarice foi uma mudança extraordinária na minha vida; foi ela quem suplantou o Ulisses, e embora muita gente ache essa comparação típica de alguém com problemas mentais, na minha cabeça é um elogio tremendo. Foi ela quem me fez gostar de Beatles, quando eu já começava a me orgulhar de ter uma lacuna tão conspícua na minha discoteca. Mas o que realmente importa é que ela é a pessoa que eu mais conheço, que eu mais quero que me conheça, com quem eu posso falar durante horas sobre qualquer assunto, ou ficar calado durante horas sem fazer nada, ou olhar durante horas, ou qualquer coisa durante horas. Ficar longe da Clarice é um pouco como desatarraxar um braço e deixá-lo em casa antes de sair pra rua. Às vezes, como no fim de semana passado, penso que um tempo longe dela pode servir para ler um pouco mais, ou ver filmes, ou pegar músicas na Internet; e fiz tudo isso, só pra descobrir que mesmo pegar música ou ler Philip Roth não é tão legal se a Clarice não estiver por perto. Ela não precisa estar falando, ou ao alcance da minha vista: estar por perto basta. A atmosfera muda, sei lá. Sou viciado na minha noiva.
A literatura e o cinema estão, no fundo, lado a lado; a literatura ganha pontos porque conheci Ian McEwan recentemente, mas se eu encontrar amanhã um diretor sensacional de quem eu não tenha visto nada ou quase nada - Murnau ou Buñuel, por exemplo - as coisas podem mudar. A música ensaia um retorno que sinto que será bem-vindo. O problema é que, como a Clarice não vai sair de onde está, nesse caso eu teria que pedir permissão ao Tija para fazer uma lista com quatro coisas em vez de três, e aquele jeito mafioso de sugerir assuntos me deu um medo danado.
5 Comments:
O melhor post desse blog. Tenho certeza de que Clarice concorda comigo!!
O post está muito bom. Acho que se a Cla não conrodar.... está na hora de rever os planos!
Abs
Poxa, eu não sei escrever bonito assim, não tenho como retribuir...
Mas mesmo sem falar bonito td mundo saber que sou louca pelo Lucas, né? Tá na cara! :)
Alguém mais acha que depois dessa nós merecemos que a Raquel ative seu blog? Está nos privando de ótimos posts, ao torna-los meros comentários...
Rapaz, isso foi bonito mesmo. Me fez sentir um crápula e/ou um desgraçado por não ter pessoas e só coisas nos meus 3 gostos. Mas só por um momento...
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