Amor para sempre
Ok, estou oficialmente assustado com Ian McEwan. O cara é muito, mas muito bom. Reparação, como diz a citação da Economist na contracapa da edição da Companhia das Letras, é daqueles raros romances que de fato merecem ser chamados de obra-prima; O inocente, Cães negros e Amor para sempre chegam perto. The child in time está um pouco abaixo do resto: talvez meu inglês não seja bom o bastante para ler McEwan no original, mas prefiro pensar que o problema estava na estrutura da história, nos desvios que distraem o leitor do sofrimento de um pai confrontado com o desaparecimento de sua filha.
(Não que os desvios não sejam deliciosos. A história de como o protagonista se transformou em escritor de livros infantis meio por acidente, quando seu editor tratou como literatura para crianças o livro que ele escrevera pensando ser literatura e ponto; o acidente de carro na estrada, narrado por McEwan com o detalhismo econômico e preciso que é seu grande trunfo; e, mais relacionado com o tema central do romance, a regressão de um amigo do protagonista, político renomado que se enfurna com a mulher numa casa de campo para viver o sonho de retornar à infância - são todos interessantes, inteligentes e muito, muito bem escritos. Mas a impressão final é que o próprio McEwan ficou com medo de penetrar muito profundamente no inferno por que passou aquele pai. O que não deixa de ser surpreendente, já que o escritor não foi apelidado de Ian Macabre à toa: os comportamentos mais estranhos e os atos mais grotescos são descritos em seu livro com uma calma de dar calafrios. Talvez The child in time seja sobre o inferno hipotético de McEwan - ou, para ser justo, de qualquer pai - e por isso tenha faltado coragem para se enfurnar nas trevas. Digressiono, mas digressionar é bom.)
Os romances de Ian McEwan costumam ter um acontecimento estranho como centro ou ponto de partida: o ataque dos cães em Cães negros, o esquartejamento de um morto em O inocente, a perda da criança em A criança no tempo. O único romance que li do autor em que isso não acontece é Reparação: há um estupro que serve de ponto de virada da trama, mas ele não é descrito. (Aliás, uma das passagens mais impressionantes da obra de McEwan está num conto de Primeiro amor, últimos sacramentos em que o narrador abusa sexualmente de uma menina pequena e a mata. Não falta coragem do escritor ali, não senhor. Talvez falte a alguns leitores. Rapaz, como é bom digressionar.) Em Amor para sempre, o acontecimento estranho está logo no início: um acidente de balão que quatro homens tentam evitar, um dos quais acaba morrendo por excesso de coragem ou lentidão de reflexos. Mas é só o começo.
Já li em mais de um lugar que McEwan é um escritor seguro a ponto de não ter medo de incluir passagens ou situações obviamente simbólicas nos seus romances. O contraste entre a religiosidade de Jed Parry e o cientificismo de Joe Rose é uma dessas situações: a fé do primeiro alimenta sua obsessão, mas a intransigência do segundo não faz nada para combatê-la. Mas, além disso, McEwan é bom o bastante para chegar até o limite do seu próprio estilo, àquele momento em que as metáforas são quase bregas - ou seja, as melhores possíveis. Às vezes escorrega e dá aquele último passo que separa o ridículo do sublime, mas é muito, muito raro. Quase sempre, seu texto é exemplar.
McEwan também sabe que escrever bem não é uma licença para descuidar da história. Em seus romances acontecem coisas, e isso pode parecer uma afirmação estúpida mas não é (ou talvez seja, quem sou eu pra julgar a inteligência do meu texto?): acontecem coisas interessantes, surpreendentes, que atraem o leitor. Em Amor para sempre, a dúvida sobre quem está realmente louco na história vai quase até o fim do livro, e mesmo após ela ser esclarecida ainda restam questões que McEwan responde com uma calma deliciosamente sádica, sugerindo um final feliz num apêndice psicanáltico mas fechando com uma nota sinistra.
(Aliás: por causa do fim, do enredo e da incerteza que dura boa parte da obra, há ecos de Amor para sempre em Bem me quer, mal me quer, filme francês com Audrey "Amélie Poulain" Tautou. Estou exagerando, eu sei.)
Ainda me falta conhecer alguns escritores contemporâneos de renome: nunca li nada de John Updike, de Phillip Roth só o divertido Complexo de Portnoy, e dois exemplos bastam para abreviar uma longa lista. Mas, até prova em contrário, o melhor escritor do mundo atualmente é Ian McEwan, e alguém que o supere merecerá meu respeito.
4/5
3 Comments:
Jovem, o Pynchon ainda é vivo e lança livros. O Ian é melhor que o Pynchon? Só provocando...
O Pynchon, como já foi explicado em conversa no MSN, é hors concours: já está mais velho, lança um livro a cada quinze anos, de repente já morreu e ninguém sabe. Mas, de fato, é melhor do que o McEwan.
Eu sei que vcs desconsideram minha opinião sobre Pynchon, mas preciso registrar aqui minha revolta: PYNCHON NÃO É MELHOR QUE IAN MCEWAN DE JEITO NENHUM. Aliás, não é nem melhor que Paul Auster, mas isso já é outra discussão...
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