Tuesday, May 03, 2005

A queda

Há algumas semanas fui ao cinema com dois amigos, um dos quais estava acompanhado por um grupo de três ou quatro outros amigos, que eu desconhecia. Enquanto outras pessoas do grupo decidiam se compravam ou não alguma guloseima na inflacionada bonbonnière do Cinemark, eu e um dos amigos do meu amigo começou a conversar. Sou um cara tímido, não costumo passar uma boa primeira impressão e costumo falar apenas com os meus conhecidos quando estou num grupo grande; meu namoro me fez melhorar um pouco, mas não muito. De qualquer forma, esse desconhecido em particular foi extremamente simpático: perguntou o que eu fazia, fingiu se interessar pelo meu trabalho, lamentou que minha namorada não estivesse lá. Me deu a impressão de ser um cara muito bacana.

Então entramos no cinema, e o cara bacana se revelou um completo imbecil. Durante os trailers, ele de tempos em tempos gritava comos e estivesse chamando alguém pelo nome de "Leco Leco"; quando o filme começou ele parou com isso, mas continuou conversando, e de vez em quando falava alguma coisa pretensamente engraçada em voz alta. O filme era ruim (Amigo oculto, aquele com o Robert De Niro) e nem valia a pena pedir para ele fazer silêncio. O que não torna sua atitude menos idiota.

O mais espantoso no mal não é até onde ele pode chegar, e sim como ele pode conviver pacificamente com o bem na mente de uma pessoa. Uma pessoa muito simpática na fila do cinema pode se transformar num completo imbecil soltando gritinhos dentro da sala de projeção. E uma pessoa que adora um cachorro e é gentil com sua secretária pode ser um genocida.

A queda é um filme sobre os últimos dias de Hitler, cercado por tropas soviéticas num bunker em Berlim. Aquele monstro que provocou a morte de dezenas de milhões e se orgulhava até o fim de eliminar os judeus do solo alemão é mostrado como um homem, como eu e você (a não ser que você seja mulher). Ele era capaz de ser gentil e terno, era capaz de dar medo, e era capaz de dar pena. Sim, dá pra sentir pena de Hitler quando se vê A queda, e isso é bom pra percebermos que estamos mais próximos dele do que gostamos de pensar. Dizer que ele era um louco, o demo, o anticristo, é subestimar perigosamente a crueldade de que somos capazes.

Teve gente - Wim Wenders e Mario Sergio Conti, por exemplo - que reclamou do respeito com que o filme trata Hitler, como se fosse preciso cuspir na cara de criminosos. O filme trata Hitler com respeito, sim, porque é como um filme honesto de recriação histórica deve tratar seus personagens. Senão vira propaganda, vira Michael Morre. (Nada contra Moore, aliás: filmes divertidíssimos.) Xingar é fácil; tentar entender e representar como aquele homem funcionava é que são elas, e pra isso é preciso respeito, e coragem também.

A morte de Mary Kelly, a última vítima de Jack o Estripador, ocupa um capítulo inteiro de Do inferno, história em quadrinhos escrita por Alan Moore e ilustrada por Eddie Campbell. No apêndice, na nota referente a esse capítulo, Moore fala sobre a psicologia de serial killers em geral e o significado de Jack o Estripador em particular, e termina falando que ao escrever aquele capítulo ele buscou se aproximar ao máximo da mente de um psicopata - e que ele não sabe nem se poderia, nem se gostaria de ir além de onde foi.

Ecos do post anterior, sobre Ian McEwan: como já disse lá, o que me incomoda em The child in time é que o escritor não foi capaz de explorar a fundo o inferno que oferecia ao leitor. Alan Moore e Eddie Campbell foram: lembro-me de desviar os olhos da página quando vi pela primeira vez William Whitey Gull cortando o rosto da sua última vítima. O que se vê na página é repulsivo, mas também redentor: o sadismo transformado em arte, ao mesmo tempo inerme e inquietante. Por um momento podemos achar que passamos a entender melhor como funcionam os serial killers, mas na verdade só passamos a entender melhor nós mesmos. Uma consequência de toda boa obra de arte.

O que vale para Moore e Campbell vale para Oliver Hirschbiegel, diretor de A queda, e Bruno Ganz, que interpreta Adolf Hitler. Eles foram lá, onde ninguém queria ter ido, trouxeram o que acharam, que ninguém quer ver, e nos mostraram com tanto talento que conseguimos transformá-lo, seja o que for, em algo nosso. Podem não ter ido até o fim, mas ninguém vai; foram até onde podiam, e foi o bastante. Um pouco mais de respeito, por favor.

4/5

0 Comments:

Post a Comment

<< Home