Friday, April 15, 2005

A. e o müesli com mel

Existe algo de profundamente puritano num ateu. Ele vê o universo como uma espécie de müesli, a ser comido sem mel. Vê os dedos melados dos crentes, o fio dourado entre a colher e o prato, e franze o sobrolho com desprezo.
Alexandre Soares Silva

Sentado à mesa do restaurante, A. observa curioso algumas pessoas na mesa ao seu lado, ajoelhadas no chão enquanto comem. O garçom, com um vestido preto de tecido grosso e um largo colarinho branco, se aproxima com uma tigela de müesli sobre a bandeja.

Garçom: Aqui está, senhor. O müesli. O senhor deseja mais alguma coisa?
A.: Por enquanto não, obrigado. (Olha para a tigela enquanto o garçom dá meia-volta.) Na verdade, acho que eu gostaria de um pouco de mel, por favor.

O garçom olha para o rosto de A., que não tem o que fazer senão olhar de volta; mas quando o faz o outro desvia o rosto, com uma expressão que, A. observa algo incomodado, não tem nenhum traço de constrangimento.

Garçom: Perfeitamente. Mel. Espero que o senhor entenda que nesse caso há alguns. Alguns requisitos.
A. (franzindo a testa): Requisitos? Que tipos de requisitos?

O garçom dá nova meia-volta, deixando A. sem resposta. A. prova um pouco do müesli e move lentamente a cabeça em concordância: mesmo se não houvesse mel, ele se deliciaria com o prato puro. Talvez com alguns morangos. O garçom retorna trazendo na bandeja um pote de mel, uma colher prateada e um pequeno panfleto impresso.

Garçom (pondo os três objetos sobre a mesa): Aqui está, senhor. Por favor, use esta colher nova.
A. (dando de ombros): Tudo bem.

O garçom retira da tigela a colher usada. A. pega a colher nova e o pote de mel, mas a mão do garçom segura seu braço. A. olha para o outro, assustado e indignado ao mesmo tempo.

Garçom: O senhor está segurando o Mel com a mão errada.
A.: Como?
Garçom: O Mel. Ele deve ser portado sempre pela mão direita. Normas da casa, o senhor compreende.
A.: Mas eu sou destro. Uso a mão direita pra segurar a colher.
Garçom: Normas da casa.
A. (largando o pote, irritado): Mas isso é um absurdo. Eu não posso aceitar que você me diga como segurar um pote de mel.
Garçom (olhando apreensivo para as outras mesas): Por favor, não é preciso fazer escândalo. Não posso fazer nada, é uma tradição do restaurante. O Mel deve ser sempre levado pela mão direita.
Maître (com um longo vestido branco adornado com motivos dourados e um chapéu cônico): Algum problema?
A.: O senhor é o maître?
Maître: Sim, meu nome é B. Posso ajudá-lo?
A.: Senhor B., eu me chamo A. Este garçom está dizendo que eu devo usar a mão direita para segurar o pote de mel. Estou tentanto explicar pra ele que-
B. (interrompendo): É verdade, é uma tradição. Um símbolo, por assim dizer, do respeito que dirigimos ao Mel.

A. pisca e olha para os dois homens em pé à sua frente, aturdido. Os dois sorriem sem vontade. A. olha para a mesa, para os outros clientes, suspira.

A.: Muito bem. O mel deve ser portado pela mão direita. Espero que ele seja realmente gostoso.

A. estica a mão direita para retirar a tampa do pote de mel, mas a mão do maître segura seu braço.

A.: O que foi agora? É a mão certa!
B.: O senhor deve de ajoelhar para abrir o Mel.
A. (alto): O quê?
B. (sorrindo sem jeito para os clientes ao redor): O senhor deve se ajoelhar. Sinto muito. Normas-
A: Você pode me chamar o gerente, por favor?
B. (após breve hesitação): Pois não.

B. cochicha algo no ouvido do garçom e sai. O garçom continua perto da mesa, vigiando A., que esfrega os olhos e pensa em deixar o restaurante. Mas o gerente, vestido como o maître mas segurando um grande cajado dourado, chega em seguida.

Gerente (sorrindo): Pois não?
A.: Qual é o nome do senhor?
Gerente: Pode me chamar de C.
A.: Prazer, meu nome é A. C., a situação é a seguinte: primeiro me falaram que eu não posso pegar o pote de mel com a mão esquerda. Tudo bem. Mas agora o seu maître está me dizendo que eu tenho que ajoelhar para abrir a pote. Isso eu já acho um pou-
C.: Sim, sim. Uma antiga tradição do nosso restaurante. (Ergue uma mão enrugada para impedir que A. o interrompa.) Compreenda, meu filho, que o Mel é um ingrediente muito importante para nós. Quando pedimos que os clientes se ajoelhem para abri-lo, estamos apenas pedindo um modesto sinal de reconhecimento da qualidade, da pureza do Mel.
A (após alguns segundos de confusão silenciosa): Sim, mas-
C.: É um gesto pequeno que representa muito para nós. Espero que o senhor compreenda, e que o faça de coração.

A. olha para os três homens, sacode a cabeça indignado e se levanta da cadeira com estrépito. Empurra a cadeira para trás e se ajoelha diante da mesa. Abre o pote de mel, pega uma colherada e derrama-a sobre o müesli. Volta a se sentar.

A.: Pronto. Satisfeitos? (Pega uma colherada do müesli.) Agora, se vocês me permitem-
C., B. e o garçom (gritando): Não! (O grito é tão forte que A. deixa cair a colher sobre a tigela.)
Garçom: Graças, o Mel não foi derramado! É um milagre.
A.: Mas o que significa isso?
C. (irritado): O senhor não pode ingerir o Mel assim, sem uma purificação! É antes de tudo anti-higiênico, mas também insultuoso! Por favor, é preciso limpar a mente antes de entrar em contato com o Mel!

A. treme inteiro e pisca repetidas vezes. Então se levanta de forma tão repentina que sua cadeira tomba para trás.

A.: Vocês estão completamente malucos? Eu só quero um pouco de mel no meu müesli! É pedir demais? Por que tantas regras? É só um pouco de mel!

Os outros clientes o observam e trocam observações em voz baixa. A. olha ao seu redor, buscando um rosto que simpatize com sua causa. Não encontra nenhum. C. lhe estende o panfleto trazido pelo garçom.

C.: Leia isto, meu senhor, ou não o deixaremos desfrutar do Mel. Podemos desconsiderar seus impropérios descuidados, mas temos que manter as tradições deste estabelecimento milenar.
A.: Eu não vou ler coisa nenhuma, seu bando de malucos, eu vou embora, e vocês fiquem sabendo que isso não vai ficar-
O Dono (de fora da sala): Meus filhos, o que vos aflige?

C., o maître e o garçom olham para trás, de onde vem a voz. A. acompanha seus olhares, intrigado. Vestindo branco, aparentando cansaço, andando com o apoio de um jovem garçom, o dono do restaurante entra no salão.

A.: E esse, quem é?
C.: Meu senhor, por favor, mais respeito! Este (sua voz treme de emoção) é P., o dono da cadeia que inclui nosso restaurante. Ele veio nos prestar uma esperada visita.
A.: Ah, sim? Pois ele vai gostar de saber que essas tradições sem sentido acabam de fazê-lo perder um cliente.

P. se aproxima devagar. A. olha para os lados: todos os demais clientes estão ajoelhados diante de suas mesas. Quanto volta a olhar para P., este está bem à sua frente, e olha-o nos olhos. A mão de P. se ergue até o seu rosto e o acaricia.

P.: Faz, filho. Lê para mim.

A. olha para P. por algum tempo, e depois para C., que lhe estende mais uma vez o panfleto. A. o pega e lê em voz alta:

A.: Creio no-
C. (interrompendo): Ajoelhado, por favor.

A. olha para os quatro, e depois ao redor da sala. As pessoas, a maior parte uma ou duas dezenas de anos mais velha do que ele, o incetivam com sorrisos iluminados e acenos. A. sacode a cabeça e se ajoelha à mesa, diante da tigela de müesli e do pote de mel. Recomeça a ler.

A.: Creio no Mel, todo-poderoso, todo-delicioso, o Mel que salva a todos os nossos paladares, o Mel que era antes que tudo o mais fosse- Como assim, antes que tudo o mais fosse?
B.: O Mel é eterno. Sempre foi, sempre será.
A.: Olha, eu sei que mel não estraga, mas mesmo assim-
B.: O senhor não deve sentir medo. O Mel é bom. O Mel era antes de tudo, e continuará sendo quando tudo estiver terminado.
A.: E as abelhas?
B.: Como assim?
A.: Esse mel não é de abelhas?

Burburinho na sala. C. se coloca entre A. e B., furioso.

C.: Como?
A. (dando de ombros): O mel, ué. Não é feito de abelhas? Vocês não têm um fornecedor?
C.: O Mel sempre esteve entre nós. Sem o Mel, não estaríamos aqui.
A. (rindo): Olha, acho que é mais certo dizer que sem o apicultor o mel não estaria aqui.

Cliente (uma senhora frágil, de vestido rosa com bolinhas azuis, brincos de argola, um grande colar de pérolas e muita maquiagem, que se levanta e aponta um dedo firme para A.): Herege!

A. se levanta e vira-se na direção do grito, mas não tem tempo de dizer nada: dois senhores fortes e o garçom o agarram e arrastam-no até a porta. A. tenta se desvencilhar, mas outros homens o seguram, socam-no, estapeiam-no. C. abre a porta e A. é arremessado para fora.

P. (segurando com a mão direita o pote de mel da mesa de A.): Perdoai-lhe, Senhor, ele não sabe o que faz.

Do lado de fora, A. olha pela janela, mas as pessoas de dentro não prestam atenção: aqueles que se ergueram voltam a se ajoelhar, e todos voltam a comer seu müesli com mel. A. sabe que provavelmente jamais poderá entrar no restaurante de novo, mas, além da sua curiosidade insaciada, sente também um grande alívio. Olhando as tigelas, vê que a maioria dos clientes do restaurante usa muito mel, mel demais; segue pela calçada pensando que aquele müesli deve ficar enjoativo de tão doce.

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