Terra em transe
Ontem poderia ter sido um dia muito importante na minha vida: coloquei uma das minhas maiores convicções à prova, e se ela não resistisse é provável que eu me considerasse hoje uma pessoa bastante diferente. Talvez não bastante, mas razoavelmente diferente. Quando você souber do que estou falando vai achar que é sacanagem, mas não é, ou melhor, é só um pouco. Defendo algo seriamente que a melhor forma de entender e conhecer uma pessoa é examinando seus gostos artísticos: que livros lê, que filmes vê, que músicas ouve, gosta ou não de escultura, vai ou não ao teatro, que partes sublinha num livro. Sou uma pessoa que não gosta do Glauber Rocha, do culto a Glauber Rocha, das idéias e opiniões de Glauber Rocha: uma pessoa, enfim, que não gostaria dos filmes de Glauber Rocha quando os visse. Ontem, na pré-estréia de Terra em transe, afinal chegou a hora de ver um filme do diretor. E felizmente eu continuo o mesmo.
Acho que foi a primeira vez que saí do cinema no meio de um filme (já dormi no cinema pelo menos duas vezes, mas foi por sono e não pelo filme ser chato). Já aguentei muita chatice no cinema, incluindo, por incrível que pareça, filmes piores do que Terra em transe (Rocha que voa, do filho do Glauber, vem à mente); se a Clarice não estivesse comigo eu provavelmente ficaria até o fim, mas isso não me faria nem um pouco mais feliz. Numa das crônicas de 31 canções Nick Hornby divide com seus jovens leitores a excitante descoberta de que, sim, você pode ir embora, e diz que é delicioso jantar às nove quando se achava que a próxima refeição seria às onze. Ontem à noite, escovando os dentes ao lado da minha noiva, entendi exatamente o que ele quis dizer.
Talvez, como a mãe da Clarice tentou nos convencer ontem à noite, Glauber fosse bom na sua época, ou seja bom para quem a viveu. Eu duvido. Glauber deve ser um caso extremo do efeito Labirinto, aquele filme com o David Bowie e uma jovem Jennifer Connely, de que eu lembrava como um dos mais divertidos da minha infância e é bem ruinzinho.
A parte técnica do filme - som, montagem - tem um aspecto espantosamente amador (só a fotografia é bonitinha). Não seria um obstáculo intransponível, se a história fosse interessante e bem contada; como não é nem uma coisa nem outra, o desleixo salta aos olhos. Fui no IMDB checar: Terra em transe é de 1967, sete anos depois de Atirem no pianista, um dos melhores filmes do Truffaut. No filme francês há um carinho, um amor pela história contada que fazem o espectador perdoar os defeitos técnicos, o som meio estranho, alguns atores ruins. Sete anos depois, Glauber faz um filme que é tecnicamente muito pior e não apresenta nada para o público além de slogans ingênuos e bregas sobre a força das massas e o fim da revolução.
A encenação é teatral, mas não pense em Dogville e sim num diretor de teatro que fica sabendo que vai ter que transformar a peça em que estava trabalhando num filme e resolve não mudar nada, nenhum diálogo, nenhuma recomendação aos atores, nenhuma entrada de cena. Quando Jardel Filho lamenta a morte de um pobre coitado assassinado a mando de um coronel e há um corte para a mulher do morto contando aos vizinhos como foi a tocaia dá pra ver como funcionaria no teatro: Jardel Filho corre para a beira do palco, fala do morto, e de repente a mulher entra em cena, olhos para o fundo do teatro, e conta o que aconteceu. Talvez ficasse bom. No cinema fica horroroso.
Acima de tudo, é um filme chato. Chato na sua pretensão, no seu elitismo, na sua breguice, nos seus excessos poéticos. E talvez o grande problema do cinema brasileiro não seja a falta de verbas ou público, ou de apoio do governo ou da iniciativa privada, e sim a coroação de um chato como melhor cineasta do país. A fila estava cheia de estudandes de comunicação, mas algumas pessoas saíram do cinema antes de nós: é pouca coisa, mas ajuda a ter esperança.
0/5
2 Comments:
Ahahahaha, eu avisei...
Hmm. Ironia, ma chère Raquel.
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