Franny & Zooey
Não faz muito tempo, saiu no Globo uma crônica do Verissimo em que ele questionava a posição da maçã como a fruta que simboliza a luxúria e o pecado. A verdadeira maçã, a fruta vermelha cheia de suco e sabor, é o tomate, argumentava o cronista, com toda a razão. An apple a day keeps the doctor away, como dizem os anglófonos, e que raios de fruto pervertido é esse que faz tão bem para a saúde?
A analogia maçã/tomate vai além da mera classificação biblíca das frutas (eu sei, eu sei, não há nenhuma referência na Gênese a uma mação, só se menciona um fruto proibido). Casos de reputação imerecida pululam. E esse post começou assim porque Salinger é um deles.
Salinger é visto como: 1) o grande escritor recluso norte-americano; e 2) o escritor que melhor soube expressar em prosa as angústias e problemas da adolescência e do começo da fase adulta. Nos dois caso, há quem o supere. O verdadeiro grande escritor recluso norte-americano é o Pynchon (não troco dez "O apanhador no campo de centeio" por um "Arco-íris da gravidade"); o verdadeiro bardo das agruras juvenis é o Fante (cinco Holden Caufield com três Seymour Glass não dariam um Arturo Bandini). O que deixa o Salinger na delicada posição de ser um escritor genial suplantado nas suas duas principais características por outros dois escritores mais geniais ainda.
Mas que Salinger é genial, lá isso é. "Catcher in the rye", que li uns dois anos atrás, é muito bom; mas os contos e novelas são ainda melhores. E é essa outra confusão maçã/tomate ligada ao escritor: o verdadeiro Holden Caufield é Seymour Glass, e o verdadeiro "Catcher in the rye" é o conjunto de contos e novelas que tratam da família Glass.
Seymour, o grande herói da família de sete irmãos, aparece bem pouco. É o protagonista no conto Um dia ideal para os peixes-banana, que em breve se transformará em curta vencedor do Festival de Cannes, e o tema central de Seymour: uma introdução, narrado pelo seu irmão Buddy. Mas mais velho dos irmãos Glass está quase sempre presente: em Pra cima com a viga, moçada! (título da primeira tradução, lançada pela Brasiliense, de Raise high the roof beam, carpenters; a nova tradução, da Companhia das Letras, recebeu o tenebroso título Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira), Buddy é o personagem principal e narrador, mas toda a ação se passa logo depois que Seymour falta ao seu próprio casamento; e em Franny & Zooey, uma novela formada por dois contos, o já falecido (suicídio) Seymour aparece em todos os cantos, como lembrança, inspiração ou motivo dos acontecimentos.
Os irmãos Glass eram sete crianças brilhantes, que participaram, ao longo de vinte anos, de um programa de perguntas e respostas no rádio. Seymour e Buddy, os mais velhos, se dedicaram a dar a Franny e Zooey, os mais novos, uma extensa educação religiosa, ensinando-os sobre Cristo, Buda, Lao-Tsé e sabe-se lá o que mais. Anos depois, durante um almoço com o namorado, Franny decide seguir o exemplo do camponês russo maneta do livro O caminho do peregrino e recitar incessantemente, em voz muito baixa, a prece de Jesus, também conhecida (só Deus é onisciente, mas o Google um dia chega lá) como "prece do Coração". Franny, o primeiro conto do livro, se passa ao longo desse almoço, e termina com Franny começando sua reza ininterrupta, após acordar de um desmaio. No segundo conto, Zooey, o personagem-título conversa com a irmã, tentando convencê-la a parar com aquela história.
A grande maravilha do livro é que ele é quase todo diálogo. Franny, no fim das contas, é uma longa conversa entre a moça do título e Lane Coutell, seu namorado. Zooey, um conto bem maior, é formado por uma longa carta de Buddy a Zooey, uma longa conversa entre Zooey e a mãe Glass, Bessie, e mais duas conversas entre Franny e Zooey. Claro, há descrições, há pensamentos, há interlúdios, mas a base de tudo são os diálogos (seria forçar muito a barra considerar a carta de Buddy um monólogo?). Terminei o livro tentando me lembrar de outro escritor que conheço capaz de escrever diálogos longos tão bem quanto Salinger, mas nenhum me veio à mente. E não é só nesse livro que Salinger demonstra sua habilidade: Para Esmé, com amor e sordidez, que muitos (não eu) consideram ser seu melhor conto, também tem uma parte fortemente baseada no diálogo. Se eu me lembro bem.
Pode-se objetar que os diálogos do livro são pouco verossímeis, articulados e sofisticados demais. Mas são perfeitamente aceitáveis dentro da família Glass, daquela estranha mistura de inteligência e loucura, de sofisticação intelectual e desesperada busca espiritual. Os Glass, no fim das contas (Buddy mais do que todos os outros, com sua prosa pomposa), poderiam ser um grupo de chatos insuportáveis, transpirando erudição vazia e se martirizando com problemas metafísicos sem importância. Às vezes eles quase chegam lá, mas Salinger sempre consegue nos fazer sentir que por trás de todas aquelas idéias confusas está um grupo de pessoas com problemas sérios e bem reais. E mesmo esse flerte com a chatice é algo pensado. Safar-se desse risco deliberadamente tomado é prova suficiente de que Salinger, se não é tão grande quanto alguns colegas, é grande o bastante para merecer toda a aclamação que tem. Mas acho que estão aclamando a obra errada.
4/5
1 Comments:
Vou dar uma nota pra resenha: 5/5
Aguardo a explicação para nossa metodologia de notas, que considero a mais genial de todas.
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