Wednesday, December 29, 2004

O alimento dos deuses

Tenho assumido preconceito contra a ficção científica, embora já tenha lido alguma coisa de literatura futurista (termo com que, na falta de outro, passo a designar qualquer obra em que seja central algum tipo de especulação sobre o futuro da raça humana, ou do mundo, ou de alguma outra coisa importante), como 1984 e Admirável mundo novo. Sempre ignorei aquela prateleira dos sebos, lá no alto ou lá embaixo da estante, reservada a livros do gênero. Mas Em terra de cego, conto de H. G. Wells que fecha a coletânea de histórias fantásticas do século XIX organizada pelo Calvino e lançada pela Companhia das Letras, é um dos melhores contos do livro. Fiz uma anotação mental para dar uma chance a Wells, e quando encontrei O alimento dos deuses numa barraca da feira de livros do Largo do Machado por R$1,33 (3 livros por R$5,00) achei que era uma boa hora de tentar.

Na minha visão preconceituosa, os livros de ficção científica têm dois grandes problemas potenciais a evitar. O primeiro, mais óbvio e por isso mais fácil de ser resolvido, é o sacrifício da trama em prol do cenário. É a grande falha de A ilha, do Huxley: o livro é basicamente composto por diálogos artificiais entre um visitante da tal ilha e pessoas que vivem lá e querem explicar ao forasteiro como funciona aquela sociedade tão diferente. Huxley poderia ter escrito um ensaio, talvez um bom ensaio, imaginando uma sociedade como aquela e explicando as suas vantagens. Seria mais agradável para o leitor, e também mais honesto. Panfletos disfarçados não costumam ser boa literatura.

Esse problema é evitado por Wells: ainda que haja uma mensagem por trás do seu texto, ela é contada através e não às custas da sua trama. Mas o segundo problema da literatura futurista está presente, e se torna claro quando analisamos justamente a mensagem do livro. Seu principal tema, ao menos a partir da sua segunda parte, é o conflito entre os seres humanos normais e os jovens gigantes criados pela ingestão da Herakleoforbia, o Alimento dos Deuses. Os humanos normais se dividem entre aqueles que incentivam os gigantes (como o engenheiro Cossar e o cientista Redstone) e os que defendem o extermínio ou a segregação dos mesmos (liderados pelo político Caterham). É a clássica disputa entre progresso e conservadorismo, entre os que estão e os que não estão dispostos a suportar os sofrimentos que surgem junto com as mudanças científicas - ou, extrapolando o argumento, sociais, culturais e políticas.

O romance de Wells é, portanto, uma parábola. E é esse o beco sem saída em que a literatura futurista muitas vezes se encontra. O romance de ficção científica tradicional segue a cartilha de O alimento dos deuses, imaginando o que aconteceria com o mundo como o conhecemos se algo mudasse. No romance de Wells, o mote é: o que aconteceria se surgisse no mundo um alimento que tornasse gigantesco todo ser vivo que o ingerisse? Outras tramas possíveis para um livro de ficção científica poderiam ser: o que aconteceria se um homem se tornasse invisível? O que aconteceria se marcianos chegassem à Terra? O que aconteceria se o homem chegasse à Lua? O que aconteceria se os bebês pudessem ser geneticamente alterados a nosso bel-prazer?

Ao se concentrar numa pergunta desse tipo, o romance futurista se torna unívoco, unívoco demais. Em terra de cego também parte de uma pergunta como essas - o que aconteceria se um homem que pudesse ver chegasse a uma sociedade em que todos são cegos há gerações? - e é igualmente unívoco, mas a ausência de desdobramentos do enredo e de outras possibilidades de interpretação são amenizadas pela curta duração da história. Um conto unívoco pode ser excelente, mas um romance unívoco dificilmente deixará de ser simplista.

É verdade que há algumas variações no romance de Wells, variações que sustentam o interesse do leitor até o fim: a vida de um menino gigante numa pequena aldeia inglesa, o amor nascente entre o filho de Redstone e uma princesa, a batalha final entre gigantes e "pigmeus". Mas todas essas histórias não conseguem se desenvolver muito, esmagadas pelo peso da metáfora em que todos os acontecimentos do livro devem se encaixar. A vida do jovem Caddles, que sai da sua aldeia natal para morrer miseravelmente em Londres, é fascinante, mas o que vemos dela é um resumo apressado. Pudéssemos ver mais, e estivesse o autor disposto a ver seu personagem como algo além de um instrumento alegórico, e o livro poderia ser muito melhor.

Mesmo no campo da parábola, Wells não vai tão longe quanto poderia. O que aconteceria se um bebê gigante tomasse Herakleoforbia, e também seu filho, e também seu neto? Wells não responde, e na verdade nem pergunta. Talvez porque o crescimento realmente desenfreado sugeriria a necessidade de um limite, indo contra a defesa do progresso científico a todo custo.

Uma grata surpresa foi o bom humor do livro - especialmente na primeira parte: o surgimento dor primeiros efeitos do Alimento (ratos, galinhas e vespas gigantes), o casal de caipiras que cuida da fazenda em que a experiência é feita, a revolta do público contra um dos cientistas responsáveis pela criação da Herakleofobia, são episódios em que o humor (preciso e elegante, não fosse o narrador um perfeito inglês) predomina. À medida que o livro avança, o tema fica mais sombrio e as passagens engraçadas tornam-se mais esparsas. Mas são elas as únicas válvulas de escape de um romance que merecia ser mais arejado.

2/5

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