Monday, January 03, 2005

Deus

No fim de Watchmen, talvez a melhor história em quadrinhos de todos os tempos, escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons, Dr. Manhattan sai de cena. Ele é o único verdadeiro super-herói da história - os outros protagonistas seguem a linha do Batman, humanos muito bem treinados e equipados - mas seus poderes são vastíssimos, quase ilimitados: atravessa paredes, muda de tamanho, cria cópias de si mesmo, faz teletransporte, sabe o que vai acontecer no futuro. Dr. Manhattan, apesar de ser também homem, é deus.

No segundo volume da série, os antigos super-heróis se reencontram no enterro do Comediante e cada um relembra uma cena vivida com o morto. Dr. Manhattan recorda o fim da Guerra do Vietnam, que em boa parte graças a ele foi vencida pelos americanos. Ele e o Comediante conversam num bar abandonado quando uma vietnamita grávida surge para interpelar o último, que diz a ela que está indo embora. Furiosa, a mulher quebra uma garrafa e rasga o rosto do Comediante, que responde sacando a arma e dando um tiro no peito da mulher. Dr. Manhattan balbucia algo sobre tiros numa mulher grávida, e o Comediante responde: você podia ter evitado tudo. Podia ter parado a bala, me teletransportado pra Marte, transformado a garrafa em flocos de neve. Mas você ficou olhando. Você não dá a mínima pra ninguém.

Mais tarde, no fim do décimo-primeiro volume, há a reprodução de uma entrevista de Adrian Veidt, o Ozymandias, em que o jornalista pergunta a ele sobre suas inclinações esquerdistas em oposição ao direitismo de outros heróis, como Rorschach, o Comediante e o Dr. Manhattan. Veidt interrompe aí o jornalista e lhe pergunta se ele prefere formigas vermelhas ou pretas. Diante da confusão do repórter, arremata: é assim que Manhattan vê os seres humanos. Ideais políticos não fazem a menor diferença para ele.

E no décimo-segundo e último volume da série, quando Ozymandias e Manhattan têm sua última conversa, o segundo diz que recuperou o interesse pela vida humana. Tanto que talvez até crie alguma. Pouco depois, desaparece.

Watchmen tem tantas qualidades que mereceria um post, um livro, uma biblioteca só para si. Quero destacar da obra apenas os três momentos acima, que formam um dos melhores e mais concisos comentários que conheço sobre a figura de deus nas grandes religiões de hoje.

Todo mundo que conhece um pouco de mitologia grega (ou nórdica, ou egípcia) sabe que os deuses costumavam ser bem mais variados e divertidos. Por um ou outro motivo, as crenças politeístas perderam terreno e surgiu nos céus a imagem de um deus que, ao menos para os cristão, é onipotente, onisciente e misericordioso. O conforto desta crença é palpável: Deus pode tudo, sabe tudo e é bonzinho. Ninguém resumiu melhor do que Heinrich Heine: God will forgive me. It's his job. (A frase original muito provavelmente é em alemão.)

Os problemas começam quando se comparam crença e realidade. Por que um deus que pode tudo e só quer o nosso bem permite o maremoto no sudeste asiático, ou o terremoto de Lisboa, ou o escravismo, ou o genocídio em Ruanda, ou Auschwtiz? Uma possibilidade de resposta é dizer que não fazer o bem não é fazer o mal: Deus será inerte, mas jamais cruel. É uma resposta que joga na defensiva enquanto escapa pela tangente. Uma característica implícita do deus cristão é a ausência de necessidade de esforço (Deus não fica cansado). Não custaria nada a ele salvar os indonésios, lisboetas, africanos, judeus e tutsis. Não seria difícil separar os bons dos maus - por que fazer no Apocalipse o que se pode fazer hoje?

Mas temos o livre-arbítrio, que nos distingue, seres humanos, dos anjos e das bestas. Fazemos como queremos. Se queremos ser maus, a escolha é nossa. Mais tarde seremos julgados. Deus não impede nossas ações, nem nos guia para o caminho correto. Cabe a nós encontrá-lo e escolhê-lo. No fim ficamos sabendo se acertamos ou não.

Até consigo, teoricamente, concordar com a possibilidade de um deus como o do parágrafo acima. Mas não consigo aceitar que ele seja misericordioso. Misericordioso seria um deus que desde o nascimento protegesse os bons e punisse os maus; ou melhor, um deus que apenas negasse o mal e nos desse o livre-arbítrio sem o gene da maldade. Se alguns somos maus, é porque Deus não se importa com isso, pois se se importasse poderia mudar as coisas. Um deus que não se importa com a maldade talvez não seja mau em si, mas certamente não é misericordioso.

Paul Krugman escreveu um artigo chamado The eternal triangle (http://www.pkarchive.org/trade/triangle.html) sobre a impossibilidade de conciliar liquidez (mobilidade de capital no curto prazo), capacidade de ajuste (em termos de política monetária) e estabilidade (câmbio pouco sujeito a alterações). Uma das três desejáveis características deve ser abandonada, não importa qual seja o regime monetário internacional. Misericórdia, onipotência e mundo imperfeito também são um triângulo impossível. O mundo imperfeito sabemos empiricamente que é uma realidade: para criar um deus plausível, precisamos sacrificar uma das duas características restantes.

Pode-se descartar a onipotência de Deus. Neste caso, algo - o Diabo, outros deuses ou o simples acaso - impede que nosso eternamente misericordioso criador faça deste mundo um paraíso terrestre. O próprio Dr. Manhattan, embora possa ver o futuro, é incapaz de mudá-lo: mesmo as suas reações, mesmo a surpresa que ele deve sentir quando sua mulher lhe conta que está vivendo com outro é incontornável. Um Deus sujeito ao acaso, jogando dados com o universo, assistindo angustiado à morte de milhares, tem um grande potencial dramático. Mas de certa forma retoma as antigas e derrotadas crenças politeístas.

Prefiro a alternativa dos homens-formiga. Somos a imensa fazenda de formiga de Deus, possivelmente apenas mais um apetrecho num enorme quarto de criança. Às vezes ele não esá olhando, às vezes nos sacode, às vezes pisa sobre a terra. Ele pode fazer qualquer um de nós fazer qualquer coisa, mas se você pudesse manipular os atos de uma formiga, o que faria? Pois é. Se eu acreditasse em deus, acho que acreditaria num deus como esse. Onipotente, mas tão desinteressado que no fim das contas poderia muito bem não existir.

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