Lost in translation
José Antonio Rivera, em O que Sócrates diria a Woody Allen, analisa questões filosóficas a partir de diversos filmes. Ao falar de Calle Mayor, filme espanhol de 1959, Rivera define prazer como a sensação que sentimos ao percorrer o trajeto do desconforto para a comodidade: o prazer de comer existe porque saciamos a fome, o do sexo porque saciamos nossos desejos e assim por diante. Não estou com o livro, mas se não me engano é de Nietzsche que Rivera toma essa idéia - que se opõe à de um filósofo latino (Cícero?), para quem o prazer era viver na comodidade, evitando tanto a escassez quanto o excesso.
Rivera discorda do filósofo latino que talvez se chame Cícero por achar que a comodidade, se muito prolongada, leva ao tédio: após um tempo, o que era cômodo se torna escasso, e precisa-se de mais do mesmo para se sentir satisfeito. Em Calle Mayor, a vida de uma cidadezinha espanhola é tão parada que alguns dos seus moradores buscam prazer ridicularizando e humilhando os outros, a única forma que conseguem conceber para escapar da irritante comodidade das suas vidas.
No fim do livro, ao comentar Casablanca, Rivera volta à diferença entre prazer e comodidade: para ele, Bogart diz para Ingrid Bergman partir por saber que nada seria igual se ela ficasse, por preferir a lembrança de um momento sublime - We'll always have Paris - ao risco de transformar o amor em constância e depois em tédio. Rick sabe que o que eles sentem não pode durar.
A explicação serve aos propósitos do livro, mas não casa com o que me lembro de Casablanca: a história do filme é a de um cínico que ama tanto uma mulher que decide se tornar um homem melhor, o que infelizmente implica em deixar a amada partir com um líder da resistência. Como resumiu brilhantemente o tão menosprezado Veríssimo, numa crônica em que o narrador encontra Rick numa espelunca parisiense: Por um sorriso daqueles um homem sacrifica até mesmo sua falta de ideais.
Encontros e desencontros é um exemplo melhor para Rivera. Bob e Charlotte estão entediados num hotel em Tokyo até que se encontram, mas no fim do filme se separam: Bob vai voltar para casa, mulher e filhos, Charlotte continuará esperando seu marido egocêntrico. Charlotte diz a Bob para ficar, mas ele vai; do táxi ele a vê andando de costas pelas ruas; ele salta, se apressa, alcança-a; murmura algo em seu ouvido; os dois se beijam e ele vai emora. Fim do filme.
Não pensei muito sobre o que Bill Murray murmura no ouvido de Scarlett Johansson até rever parte do filme nesse domingo, no Telecine, e me lembrar do livro de Rivera, que li semana passada. Acho que Bob e Charlotte entendem o que Rivera quis dizer. Numa noite em que os dois, insones, ficam no quarto de Bob assistindo a La dolce vita e falando sobre a vida, Charlotte diz, Let's never come here again because it will never be as much fun. Os dois não gostam da idéia de se separar, mas gostariam menos ainda de ficar juntos e deixar todo aquele prazer se transformar em comodidade.
Por isso, acho que Bob se inclina sobre Charlotte e murmura: It's alright. We always knew. Let's not cry and let's not sorrow and let's never meet again because it will never be as much fun. Ok? E ela responde, Ok.
3,5/5
PS: A menos de três semanas do meu casamento, não há como concordar com Rivera, Nietzsche, Bob e Charlotte: nem todo prazer se transforma em comodidade, e nem toda comodidade é desprovida de prazer. Mas a decisão do casal merece respeito.
3 Comments:
"We´ll always have Tokyo..."
Mas ele pode ter dito também: "For Relaxing times, make it Santoro time."
Você quis dizer Suntory ou está insinuando que Bob Harris tinha um fraco por galãs brasileiros?
Ahahahahahahahahahahahaha
Post a Comment
<< Home