Friday, October 29, 2004

O Taxidermista

Saio do trabalho tarde, lá pelas onze da noite. Já tinha observado, no ponto, enquanto esperava o ônibus, um senhor de bengala que costuma estar sempre ébrio, e costuma estar sempre batendo papo com alguém que ele certamente não conhece e que certamente preferiria ter sua paz não-perturbada pelo tal indivíduo.

Eu, que sempre prefiro ter minha paz não-perturbada por senhores bêbados que, no geral, são chatos e não largam mais do pé depois que você dá trela; eu, que não sou de dar muito papo pra esse tipo de gente, sempre me preocupava em manter uma distância segura da bengala bêbada desse sujeito.

Um dia, contudo, me distraí e quando percebi a proximação dele já era tarde demais. Veio até mim e perguntou se eu sabia jogar xadrez. Respondi que sim, e pensei que, talvez, saber as regras não significava exatamente saber jogar. Mas isso eu não disse a ele. Respondi apenas que sim, ele se mostrou contente com a resposta e disse que ia me fazer outra pergunta. Ok, manda. Ele mandou:

- O que é um Taxidermista?

Percebi que ele não perguntava movido pela curiosidade. Tinha um olhar de desafio, de perfeita confiança. Ele obviamente sabia a resposta, e, supeito eu, tinha a crença de que eu certamente não saberia o que queria dizer o palavrão. Poderia ter respondido simplesmente "não", e ele certamente ficaria bastante contente em me explicar e ao mesmo tempo demonstrar que domina perfeitamente o vocabulário da nossa língua. Poderia ter feito isso, mas não fiz. Respondi com o significado de Taxidermista.

Enorme, a alegria do homem. Ele não acreditava nos próprios ouvidos. "Você acertou, você acertou!", ele repetia, entusiasticamente. Depois me disse: "O dia inteiro eu perguntei para cada pessoa que encontrava o que era taxidermista, e ninguém soube responder. Você foi o primeiro. Parabéns." e me estedendeu a mão, a qual apertei contente. Minha carona havia chegado, então eu o deixei. E ele ficou lá, ainda sorrindo.

De vez em quando cruzo com ele, ele anda aqui nas redondezas. Sempre bêbado, sempre com a bengala, sempre com um casaquinho de lã. Não é desses velhos bêbados sujos, pelo contrário, é bem limpinho. Não veio mais falar comigo, talvez nem se lembre de mim. Por onde passa, as pessoas olham-no com aquele olhar as vezes de pena, as vezes de um certo medo. Eu não. Eu sorrio e penso: "lá vai um sujeito que sabe o que é um taxidermista".

Thursday, October 28, 2004

Por que postar pouco

Ano passado, no Festival do Rio, consegui convencer um amigo a ver seis filmes num único dia (o último, por sinal, durava três horas e começou meia-noite e meia; como era o "Dogville", não há do que reclamar). No final do terceiro filme, a conclusão foi inevitável: fazer filmes tá fácil demais.

Nos últimos três filmes as coisas melhoraram bastante. Os primeiros, porém, eram de um desleixo quase ofensivo. Muitos diretores de filmes ruins podem se defender dizendo que aquilo foi o melhor que puderam fazer, uma desculpa um pouco ridícula na linha de "o que vale é a intenção", mas que ao menos gera respeito pelo senso de profissionalismo da pessoa. Naqueles três filmes a história era contada aos atropelos, as atuações eram medíocres, tudo parecia ter sido feito às pressas. O fundo do poço foi o último, em que o suicídio de uma menina de, sei lá, sete anos foi tratado como, sei lá, uma cárie no dente da protagonista, irmã mais velha da garota.

Coisas da tecnologia. Qualquer zé mané pastel com uma câmera digital na mão e um programa de edição chinfrim no computador pode fazer um filme nas horas vagas. Difícil é arranjar distribuidora, publicidade etcetera. Mas fazer o filme é moleza. O mesmo, eu imagino, pode ser dito de discos. E certamente de textos. Felizmente o Blogger não tem uma banca examinadora para avaliar o padrão de qualidade dos seus assinantes. Entrou, respondeu um formulariozinho, fingiu que leu o termo de contrato e pronto. Saia escrevendo.

Pode até ser verdade que a qualidade surja da quantitade, mas a maior parte dos textos serve como fertilizante. E haja merda pra fazer nascer uma rosa. O que não quer dizer que quanto mais merda melhor.

Conscientes dessa situação, nós aqui do Fêmea de Cupim só escrevemos quando temos, ou pensamos ter, algo de útil ou interessante a dizer. A exceção, é claro, é o post que se encerra agora.

Tuesday, October 26, 2004

Don't vote at all

Watch Blog é um site 3 em 1: republicanos, democratas e independentes postam artigos defendendo suas posições e esculhambando a dos outros. Tudo numa relativa paz, embora a área de comentários seja bem agitada.

Uma das mais agitadas é a do Wasted votes, em que um independente reclama da mania que todo mundo tem de falar que quem não vota num dos dois partidões está jogando o voto no lixo. Até eu dei meus pitacos, falando bem do sistema eleitoral aqui no Brasil e deixando claro que não tinha nada que ficar me metendo. Um cara lá falou que se eu sou um americano vivendo no Brasil tenho que discutir o assunto sim, é dever cívico. Achei que tava implícito aí a idéia de que se eu sou um brasileiro vivendo no Brasil tenho mais é que calar a boca. Deixei quieto.

Mas enfim. Aí anteontem vi o Mainardi dizendo no Manhattan Connection que o eleitor independente é basicamente um cara que não está disposto a votar em nenhum dos dois grandes candidatos. Parece óbvio, e é, mas daí segue que não dá pra ficar culpando o Ralph Nader por derrotas dos democratas: quem vota naquele não votaria nestes, mesmo se não houvesse opção. O Mainardi está, é óbvio e como sempre, exagerando, mas alguma razão ele tem. Não é à toa que o autor do "Wasted votes" depois comentou seu próprio texto dizendo que escolher Bush ou Kerry é como escolher uma facada no coração ou um tiro na cabeça: o tempo que passamos agonizando pode mudar, mas a morte é certa.

E foi aí que lembrei de Eleição, filme de Alexander Payne ("As confissões de Schmidt") sobre as campanhas para o equivalente a um grêmio estudantil numa high school americana. Concorrem o ex-capitão do time de futebol (americano), a menina pentelha com currículo perfeito e uma lésbica mal amada. E na hora do discurso a lésbica chuta o balde. Essa eleição não serve pra nada. Só se interessa quem é eleito, pra colocar no currículo e entrar na faculdade. Tudo é sempre igual. Então votem em mim porque eu nem quero ir pra faculdade e a única coisa que vou fazer é acabar com a porra do grêmio. E aí a galera levanta e aplaude e grita. Ou não votem em mim, que se foda, don't vote at all. E aí a galera levanta e aplaude e grita, de novo, mas com mais intensidade. Não sei em que momento eles se sentaram. Milagres da montagem.

Nader - e os demais nanicos, tão nanicos que são nanicos mesmo comparados com o Nader - é a lésbica mal amada. Que no fundo tem razão: não interessa muito qual partidão vai ganhar. (Bom, normalmente não interessa muito: nesta eleição em particular, muita gente boa considera um imperativo que Bush saia da Casa Branca, e alguns independentes partem daí para explicar
por que votam em Kerry.) Para quem tem opiniões políticas muito extremadas, os democratas e os republicanos estão no centro demais para que seja possível distingui-los.

Esse texto pode estar parecendo uma análise chinfrim das eleições norte-americanas, mas não é - bom, é também, mas não principalmente. Esse texto é principalmente pra dizer que "Eleição" é melhor do que eu pensava. Sempre tinha visto o filme como uma grande sátira a processos eleitorais; só agora percebi que é também uma grande sátira a um processo específico. Pra se ver de novo.

Friday, October 22, 2004

Direitos

Vejo o mundo ideal. Um mundo onde as pessoas de boa-fé podem sair para fora e entrar para dentro livremente, sem serem por causa disso julgadas e terem praticamente negado o seu direito de ir e vir.

Não é sonho. Nos sonhos, a gente sai para dentro e entra para fora, e ninguém questiona e nem enxerga absurdo nenhum nisso.

É a diferença entre a Utopia Utópica e a Utopia Possível.

O cômico fim da fêmea do cupim

Fim, não. Começo. Sobre as cinzas da vaca Vitória ergueremos o império dos cupins. Que será posteriormente destruído pelos próprios cupins, ávidos por roer as bases de civilizações e mesas de pinho. A não ser que seja um império de pedra. A conferir.

A trágica história da Vaca Vitória

Era uma vez uma vaca Vitória.
A vaca morreu, acabou a história.