Friday, April 29, 2005

Quando você acha que o Orkut não serve mais pra nada

A vida marinha com Steve Zissou

Wes Anderson tem as melhores músicas e os personagens mais estranhos e adoráveis, o que já lhe dá alguns corpos de vantagem. Mas o que realmente destaca o rapaz é aquele estranho jeito de misturar comédia e drama, aquele tom melancólico mesmo nas cenas mais hilárias, aquele fundo de graça mesmo nos momentos mais tristes. Numa palavra, estilo. Eu diria mais, mas nada me vem à cabeça. Só isso: hoje de manhã o filme está ainda melhor do que ontem à noite. O melhor do ano até agora.

4/5

Thursday, April 28, 2005

Mania de notas

Dar notas é divertido, mas tem seus problemas. Às vezes você está sentado no cinema, tranquilamente apreciando um filme, quando surge aquela dúvida: é um 2 ou um 3? Um 3 ou um 3,5? Merece negrito? Maldito, você grita (em pensamento para não atrapalhar os outros espectadores), deixe-me ver o filme em paz! Mas já é tarde, sua cabeça passa e repassa os prós e contras do filme sem cessar, e quando você vê mal está prestando atenção na cena. Revoltante.

Até porque as notas não têm tanta importância assim. São uma análise não do filme, livro, música, cidade, livraria ou o que seja, e sim da experiência de conhecer o objeto em questão. Um livro lido em casa talvez recebesse outra nota se fosse lido no ônibus. Talvez não: há livros que operam bem em qualquer ambiente, enquanto outros precisam de uma atenção, um silêncio e um conforto especiais. O mesmo para filmes: ver Morte em Veneza após uma noite de meras três horas de sono é tão inadequado quanto ler O arco-íris da gravidade à beira da piscina enquanto seu tio balofo canta um pagode paulista e seu primo sardento decide mergulhar na água pulando por cima do seu corpo.

Pode ser mais sutil também. Por exemplo, Mémoires d'Hadrien talvez terminasse com uma nota maior do que o 3 que recebeu se tivesse sido lido em menos tempo: os dias sem leitura quebraram o ritmo do texto, e eu estava sem saco de voltar a cada vez que pegava o livro para conferir se Arrien era o secretário do imperador ou o poeta que o acompanhava (se é que havia um Arrien).

A situação piora quando se começa a comparar notas. Quase sempre que faço isso acabo mudando um bocado de coisas, porque como é que esse filme recebeu um 3,5 se aquele ali só recebeu um 3? E eu devia estar delirando quando dei um 4 para Carandiru - a mesma nota de Barry Lyndon, Boogie Nights e O pianista? Você deve estar brincando. Mas esse é um exemplo extremo. Subjetivas, variáveis e inconsistentes: notas só servem mesmo pra gente se divertir.

Wednesday, April 27, 2005

Top 1 Primeiros capítulos

Amor para sempre, de Ian McEwan. E as sessenta páginas seguintes ficam quase no mesmo nível. Se mantiver o fôlego até o fim, é candidato sério ao top 5 Livros do ano.

Tuesday, April 26, 2005

Quadrinhos na Internet

Nem só de revistinhas vivem os apreciadores da nona arte:

Scott McCloud - Pensem em Lênin, mas se o comunismo fosse uma coisa boa. Scott McCloud é o teórico da revolução que os quadrinhos talvez façam um dia, e se os revolucionários obedecerem à teoria a revolução via ser das boas. Há pouco tempo saiu por aqui Desvendando os quadrinhos, em que McCloud resume a teoria da nona arte. Foi este livro que me convenceu a não misturar na minha estante livros normais e livros em quadrinhos, porque os últimos, no fim das contas, são de um tipo de arte que guarda apenas algumas relações com a literatura comum. A continuação, Reinventing comics, causou um bafafá danado lá fora. Scott é um dos maiores defensores da idéia de que a Internet pode causar uma verdadeira mudança na forma como consumimos e consideramos os quadrinhos.

No seu site, além de links para os livros e um blog meio mais ou menos, há algumas histórias escritas especialmente para a Internet. Na sessão Online comics há uma espécie de continuação para os seus dois livros teóricos, I can't stop thinking; uma bela história sobre a obsessão de McCloud com xadrez durante a infância; e uma aventura de Zot, um super-herói criado por ele no fim dos anos 80, entre outras. Mas a parte mais divertida do site é The morning improv, que já conta com 26 histórias - incluindo as excelentes 3 partes de Meadow of the damned, a delicadeza irônica de Zen dating e o humor negro de Brad's somber mood e Uninformed Bob. Para quem achar que um talento como esse merece ser incentivado, há The right number, há venda no site por 25 cents. Essa eu não li porque sou muito mão-de-vaca.

PvP - Uma das grandes sensações dos quadrinhos virtuais, escrita e ilustrada por Scott Kurtz. O cotidiano da redação de Player vs. Player, uma revista sobre videogames e jogos de computador. Muito parecida com as tiras de gags dos jornais, mas muito boa, embora eu esteja perdendo um pouco meu interesse. Recomendo para quem tiver tempo a leitura dos arquivos. Sim, todos os arquivos. Sou um cara completista. Outra história em quadrinhos sobre o mundo dos games é Penny Arcade, mas ela é hermética demais para quem não passa horas jogando Everquest ou sei lá mais o quê.

Questionable Content - Descoberta ontem num blog francês. A vida de Marteen, jovem com um trabalho tedioso e um gosto por música indie, seus amigos, sua falta de jeito com as mulheres, seu computadorzinho antropomórfico falante. Esta tira define o gosto musical de muita gente que eu conheço - não acha, Tija? Uma sitcom em quadrinhos, mas feita com muita qualidade e mais ousadia do que é permitido no horário nobre das tvs abertas americanas.

Wednesday, April 20, 2005

The booklovers

Alguns blogs franceses estão enviando uns aos outros e respondendo a este questionário. Gostei. Também quero.

1. Quantos livros você lê por ano?

Não sei, porque nunca tinha parado para contar. Este ano, influenciado pelas manias documentais da minha namorada (parabéns, fofinha!), comecei a anotar num caderno todos os livros e filmes que li e vi. Por enquanto, foram 39 filmes e 37 livros, e pretendo manter a média de 10 filmes e livros por mês. Chutando, minha média histórica deve ser uns 100 livros por ano.

2. Qual foi o último livro que você comprou?

Amor para sempre, de Ian McEwan, numa edição capa feia da Rocco. 2005 está sendo meu Ano McEwan: a cada dez livros que leio, um é do homem. Esse será o quadragésimo livro do ano. Comprado no Travessão de Ipanema, no fim da tarde de um agradabilíssimo domingo que talvez mereça um post.

3. Qual foi o último livro que você leu?

O último livro que terminei de ler foi Os aniversariantes, de Beryl Bainbridge. Já falei dele aqui. O último livro que comecei a ler foi Mémoires d'Hadrien, de Marguerite Yourcenar, em que o imperador romano Adriano reconta sua vida numa carta ao seu sucessor. Li esse livro em português há alguns anos e agora estou treinando meu francês. Muito, muito bom: mais um romance histórico que transmite o passado sem deixar de refletir no futuro, tão bem escrito que é fácil esquecer a Yourcenar e se pegar pensando que o próprio Adriano escreveu o livro.

4. Liste cinco livros que tenham um significado especial para você ou que você tenha gostado muito

Sim! Um top 5! Mas um top 5 complicado - fossem os cinco livros favoritos seria mais fácil. Livros com significado especial? Vejamos:

1. Sonhos de Bunker Hill, de John Fante. Um presente de aniversário que ficou durante muito tempo na prateleira sem despertar interesse. Lê-lo foi uma revelação. Até hoje é o meu Fante preferido. Na maior parte dos casos, conhecemos os grandes escritores antes de conhecer suas obras. Fante foi uma exceção: até ler este livro, não sabia nada sobre ele, o que lhe deu um ar de tesouro secreto que perdura até hoje.

2. Ulisses, de James Joyce. Eu sei, é pedante, mas não posso faezr nada. Se tem um livro que mudou a minha vida, foi esse.

3. Leviatã, de Paul Auster. O primeiro livro que li dele, e meu preferido (aliás, capto uma tendência de preferir os primeiros livros lidos. Dá um post?). Por algum tempo, foi meu escritor atual preferido, até McEwan tomar a frente. Mas a grande importância para mim é que Auster é um dos escritores preferidos da Clarice (parabéns de novo, fofa), e foi ela que me apresentou à sua obra. Se fosse só por isso e por Beatles, minha gratidão já teria que ser imensa.

4. Reparação, de Ian McEwan. A grande vantagem de gostar de um artista atual é saber que a construção da sua obra ainda está em andamento. Minha vida é melhor porque espero ansiosamente pelos próximos discos do Radiohead e pelos próximos livros do Ian McEwan. Este aqui não foi seu primeiro livro que li, mas foi o primeiro romance. E, até agora, é o melhor.

5. Contos reunidos, de Rubem Fonseca. Eu tinha no máximo doze anos quando o li, e ele me levou a escrever uma série de contos fonsequianos horríveis. Felizmente passei da fase de imitar Rubem Fonseca, porque duvido que alguém consiga fazer melhor. Até prova em contrário, é o meu contista preferido.

5. Para quem você vai passar este questionário (3 blogs) e por quê?

Para ninguém, uai. Mas está aqui. Incentivo o Tija a responder às perguntas também - e, se o Felipe e o Fafá quiserem ressuscitar seus blogs, aqui está uma boa desculpa.

Tuesday, April 19, 2005

Bento XVI

Uma coisa legal em Ratzinger: para ele, é verdade, a igreja católica não deve ceder nada aos progressistas, mas ele acha que dessa forma a igreja diminuirá. E ficará mais forte, mas isso não interessa: o que interessa é que o novo papa, se pensa mesmo dessa forma, sabe que a visão de mundo dele deve ser dele e de quem acredita nele, sem ser forçada goela dos infiéis abaixo. Parafraseando o Verissimo: respeito todas as religiões, mas elas lá e eu aqui. Ratzinger parece, e tomara que seja, capaz de manter essa educada distância.

Uma proposta modesta

Politicamente inviável, é verdade, mas agradará os economistas - ao menos os liberais. A idéia é simples: eliminar todos os programas assistenciais do governo e substituí-los por uma quantia em dinheiro para cada cidadão do país.

O argumento: a sociedade exige que o governo ofereça no mínimo uma alternativa aos serviços prestados por empresas privadas em diversos setores da economia, notadamente saúde e educação. O investimento do governo nesses setores muitas vezes gera problemas econômicos: excessiva burocratização, ineficiência, corrupção e outros que tais. Por outro lado, é dever do governo se preocupar em garantir que seus cidadãos possam viver em condições minimamente aceitáveis, ou seja, tenham uma boa educação e uma boa moradia, não passem fome etc.

Ora, por que não interromper os gastos ineficientes do governo em programas de assistência e transferir dinheiro diretamente para o bolso do cidadão, para que este faça da sua vida o que achar mais apropriado? Uma mesada governamental de valor adequado pode garantir ao menos a possibilidade de uma vida não miserável para qualquer cidadão do país.

O método: calcula-se uma espécie de cesta básica estendida, que compreenda alimentação, moradia, gastos com saúde etc. Todo cidadão do país terá direito a esta cesta básica mensal, independente da sua situação financeira. Em contrapartida, as escolas, universidades e hospitais públicos, por exemplo, encerrarão suas atividades.

Caso a despesa da cesta básica seja menor do que a despesa anterior com os estabelecimentos públicos, beleza. Caso contrário, será necessário um aumento dos impostos. Que seja. O valor da cesta básica será o mesmo em todo o país, para todas as pessoas.

Problemas: as crianças. Dar a cesta básica das crianças para seus responsáveis legais criaria um incentivo perverso para ter filhos. Uma possibilidade é só começar o pagamento mensal quando a pessoa atingir a maioridade, mas nesse caso haveria um incentivo perverso em outra direção, para gastar pouco com os filhos. A solução proposta é destinar aos responsáveis pelas crianças 25% do valor da cesta, indo os outros 75% seja para o governo, seja para uma conta pessoal que a pessoa poderá usar quando se tornar maior de idade.

A transição. Algumas pessoas com poucas posses podem sofrer com o fim dos serviços públicos: uma pessoa muito doente, por exemplo, pode estar recebendo mais dinheiro em cuidados médicos do governo do que a cesta básica, e a implementação desta tornará essa pessoa incapaz de arcar com o custo do seu tratamento. É um problema mais grave do que o outro, e minhas idéias para resolvê-lo são apenas embrionárias: deixo-o em aberto para os posíveis interessados, que podem, aliás, comentar e discutir quaisquer outros pontos desta modesta proposta.

UPDATE

O comentário do Saud faz sentido: gastos com saúde variam muito de pessoa para pessoa, não dá pra tirar a média, entregar o dinheiro e achar que está tudo bem. O papel do governo nesse caso é ser uma seguradora de última instância. Mas para educação, alimentação, moradia e que tais, a idéia ainda se mantém. Por enquanto.

Monday, April 18, 2005

Livros etc.

É por essas e outras, e não só pelos livros, que a Amazon é um site tão bacana

Objeto de desejo

Meu aniversário foi há menos de um mês. Se alguém quiser me presentear, ainda está em tempo.

Os aniversariantes

Na maior parte dos casos, o segundo colocado em alguma disputa é tão lembrado pela posteridade quanto o último, ou o quarto. Uma honrosa (ele certamente gostaria do adjetivo) exceção é Robert Falcon Scott, comandante da segunda expedição a alcançar o Pólo Sul, um mês após a primeira, liderada por Roald Amundsen. Moral: para ficar conhecido, um fracasso espetacular pode ser mais eficiente do que um sucesso discreto.

O planejamento da excursão de Scott ao Pólo Sul foi desastroso do começo, com a escolha de pôneis em detrimento dos cães, ao fim, quando os quatro homens que fariam a última marcha rumo ao pólo se transformaram em cinco. Scott é o símbolo máximo do amadorismo esportivo britânico no começo do século XX, e a metáfora perfeita para explicar o declínio desse amadorismo. Sua morte, em março de 1912, a onze milhas de distância de um acampamento cheio de víveres, prenuncia o choque de realidade que a Europa receberia alguns anos depois, quando a guerra deixaria de ser um nobre chamado pela defesa da pátria para se tornar aquela coisa suja em que tanta gente morre. Remarque devia detestar Scott.

Os aniversariantes, de Beryl Bainbridge, recria a última expedição de Scott desde a saída do Terra Nova de Cardiff até a morte de Titus Oates no retorno do Pólo Sul, passando pela "pior viagem do mundo", a expedição de três homens ao Cabo Crozier. Cada parte da viagem é narrada por um dos cinco homens que chegaram até o pólo e morreram tentando voltar. Às vezes Bainbridge resolve mostrar os frutos de sua pesquisa em momentos inapropriados - por exemplo, quando o sargento Evans discorre sobre a personalidade de Scott e busca explicações na vida de família do comandante - mas é um defeito menor num livro muito bem escrito.

Bainbridge é uma partidária de Roland Huntford, autor de O último lugar na Tarra, para quem Scott era um idiota arrivista que levou seus companheiros à morte. Há controvérsias: Susan Solomon, num livro que ainda tenho que ler, defende que os ingleses de fato enfrentaram tempestades e temperaturas incomumente inóspitas na sua viagem de retorno. De qualquer forma, as opiniões de Bainbridge não tornam o livro melhor nem pior.

A melhor coisa do romance é a sensação de impending doom que o permeia, sem que Bainbridge precise fazer muito esforço: basta o fato de sabermos que no fim aqueles cinco homens estarão mortos. Como quando assisti a Domingo sangrento, queria que de alguma forma os eventos fossem alterados, ao mesmo tempo em que sabia que não havia escapatória - e, um pouco mais perverso, que só estava lendo aquele livro por causa da tragédia que não queria que acontecesse. É uma ótima escolha fechar com a narração de Oates, o segundo a morrer, e deixar os três restantes agonizando na neve. Um fim triste de dar pena, que me deixou com vontade de poder aconselhar aquele pessoal antes da viagem. Esqueçam os cavalos. Levem muitos cães.

3,5/5

Até que a Folha nos processe

Folha de São Paulo

Da Sucursal do Rio de Janeiro

Os mercados se agitaram nesta segunda com rumores de fusão de dois dos mais influentes e conceituados blogs da atualidade - A Fase Azul de Daumier Smith e Fêmea de Cupim. Dois dos controladores dos blogs foram vistos em animado papo durante longo tempo na noite de ontem, no Café do B, o que reforçou os boatos que já vinham correndo o mercado há algum tempo.

- Faria todo o sentido, pois ambos têm uma linha de pensamento próxima, utilizando, inclusive, os mesmo critérios de pontuação para filmes, livros e músicas - disse uma fonte que preferiu não se identificar.

Já Spielberg preferiu ser diplomático quando perguntado sobre a possibilidade de uma carga maior de críticas por conta do fortalecimento dos blogs:

- Não comento em cima de rumores, e ainda não entendi muito bem. Eles precisam dar uma longa explicação sobre tudo o que querem fazer - Disse o diretor (sic) de A.I. por celular.

A expectativa é que o negócio se concretize esta semana, com um anúncio formal por parte dos controladores.

Friday, April 15, 2005

Lindo

It was unanimously voted by the three-member Pulitzer Prize jury on fiction for the 1974 Pulitzer Prize for Fiction. However, the other eleven members of the fourteen-member Pulitzer board overturned this decision, calling the book "unreadable", "turgid", "overwritten", and "obscene", with at least one member confessing to not having gotten more than a third of the way through the book.

A. e o müesli com mel

Existe algo de profundamente puritano num ateu. Ele vê o universo como uma espécie de müesli, a ser comido sem mel. Vê os dedos melados dos crentes, o fio dourado entre a colher e o prato, e franze o sobrolho com desprezo.
Alexandre Soares Silva

Sentado à mesa do restaurante, A. observa curioso algumas pessoas na mesa ao seu lado, ajoelhadas no chão enquanto comem. O garçom, com um vestido preto de tecido grosso e um largo colarinho branco, se aproxima com uma tigela de müesli sobre a bandeja.

Garçom: Aqui está, senhor. O müesli. O senhor deseja mais alguma coisa?
A.: Por enquanto não, obrigado. (Olha para a tigela enquanto o garçom dá meia-volta.) Na verdade, acho que eu gostaria de um pouco de mel, por favor.

O garçom olha para o rosto de A., que não tem o que fazer senão olhar de volta; mas quando o faz o outro desvia o rosto, com uma expressão que, A. observa algo incomodado, não tem nenhum traço de constrangimento.

Garçom: Perfeitamente. Mel. Espero que o senhor entenda que nesse caso há alguns. Alguns requisitos.
A. (franzindo a testa): Requisitos? Que tipos de requisitos?

O garçom dá nova meia-volta, deixando A. sem resposta. A. prova um pouco do müesli e move lentamente a cabeça em concordância: mesmo se não houvesse mel, ele se deliciaria com o prato puro. Talvez com alguns morangos. O garçom retorna trazendo na bandeja um pote de mel, uma colher prateada e um pequeno panfleto impresso.

Garçom (pondo os três objetos sobre a mesa): Aqui está, senhor. Por favor, use esta colher nova.
A. (dando de ombros): Tudo bem.

O garçom retira da tigela a colher usada. A. pega a colher nova e o pote de mel, mas a mão do garçom segura seu braço. A. olha para o outro, assustado e indignado ao mesmo tempo.

Garçom: O senhor está segurando o Mel com a mão errada.
A.: Como?
Garçom: O Mel. Ele deve ser portado sempre pela mão direita. Normas da casa, o senhor compreende.
A.: Mas eu sou destro. Uso a mão direita pra segurar a colher.
Garçom: Normas da casa.
A. (largando o pote, irritado): Mas isso é um absurdo. Eu não posso aceitar que você me diga como segurar um pote de mel.
Garçom (olhando apreensivo para as outras mesas): Por favor, não é preciso fazer escândalo. Não posso fazer nada, é uma tradição do restaurante. O Mel deve ser sempre levado pela mão direita.
Maître (com um longo vestido branco adornado com motivos dourados e um chapéu cônico): Algum problema?
A.: O senhor é o maître?
Maître: Sim, meu nome é B. Posso ajudá-lo?
A.: Senhor B., eu me chamo A. Este garçom está dizendo que eu devo usar a mão direita para segurar o pote de mel. Estou tentanto explicar pra ele que-
B. (interrompendo): É verdade, é uma tradição. Um símbolo, por assim dizer, do respeito que dirigimos ao Mel.

A. pisca e olha para os dois homens em pé à sua frente, aturdido. Os dois sorriem sem vontade. A. olha para a mesa, para os outros clientes, suspira.

A.: Muito bem. O mel deve ser portado pela mão direita. Espero que ele seja realmente gostoso.

A. estica a mão direita para retirar a tampa do pote de mel, mas a mão do maître segura seu braço.

A.: O que foi agora? É a mão certa!
B.: O senhor deve de ajoelhar para abrir o Mel.
A. (alto): O quê?
B. (sorrindo sem jeito para os clientes ao redor): O senhor deve se ajoelhar. Sinto muito. Normas-
A: Você pode me chamar o gerente, por favor?
B. (após breve hesitação): Pois não.

B. cochicha algo no ouvido do garçom e sai. O garçom continua perto da mesa, vigiando A., que esfrega os olhos e pensa em deixar o restaurante. Mas o gerente, vestido como o maître mas segurando um grande cajado dourado, chega em seguida.

Gerente (sorrindo): Pois não?
A.: Qual é o nome do senhor?
Gerente: Pode me chamar de C.
A.: Prazer, meu nome é A. C., a situação é a seguinte: primeiro me falaram que eu não posso pegar o pote de mel com a mão esquerda. Tudo bem. Mas agora o seu maître está me dizendo que eu tenho que ajoelhar para abrir a pote. Isso eu já acho um pou-
C.: Sim, sim. Uma antiga tradição do nosso restaurante. (Ergue uma mão enrugada para impedir que A. o interrompa.) Compreenda, meu filho, que o Mel é um ingrediente muito importante para nós. Quando pedimos que os clientes se ajoelhem para abri-lo, estamos apenas pedindo um modesto sinal de reconhecimento da qualidade, da pureza do Mel.
A (após alguns segundos de confusão silenciosa): Sim, mas-
C.: É um gesto pequeno que representa muito para nós. Espero que o senhor compreenda, e que o faça de coração.

A. olha para os três homens, sacode a cabeça indignado e se levanta da cadeira com estrépito. Empurra a cadeira para trás e se ajoelha diante da mesa. Abre o pote de mel, pega uma colherada e derrama-a sobre o müesli. Volta a se sentar.

A.: Pronto. Satisfeitos? (Pega uma colherada do müesli.) Agora, se vocês me permitem-
C., B. e o garçom (gritando): Não! (O grito é tão forte que A. deixa cair a colher sobre a tigela.)
Garçom: Graças, o Mel não foi derramado! É um milagre.
A.: Mas o que significa isso?
C. (irritado): O senhor não pode ingerir o Mel assim, sem uma purificação! É antes de tudo anti-higiênico, mas também insultuoso! Por favor, é preciso limpar a mente antes de entrar em contato com o Mel!

A. treme inteiro e pisca repetidas vezes. Então se levanta de forma tão repentina que sua cadeira tomba para trás.

A.: Vocês estão completamente malucos? Eu só quero um pouco de mel no meu müesli! É pedir demais? Por que tantas regras? É só um pouco de mel!

Os outros clientes o observam e trocam observações em voz baixa. A. olha ao seu redor, buscando um rosto que simpatize com sua causa. Não encontra nenhum. C. lhe estende o panfleto trazido pelo garçom.

C.: Leia isto, meu senhor, ou não o deixaremos desfrutar do Mel. Podemos desconsiderar seus impropérios descuidados, mas temos que manter as tradições deste estabelecimento milenar.
A.: Eu não vou ler coisa nenhuma, seu bando de malucos, eu vou embora, e vocês fiquem sabendo que isso não vai ficar-
O Dono (de fora da sala): Meus filhos, o que vos aflige?

C., o maître e o garçom olham para trás, de onde vem a voz. A. acompanha seus olhares, intrigado. Vestindo branco, aparentando cansaço, andando com o apoio de um jovem garçom, o dono do restaurante entra no salão.

A.: E esse, quem é?
C.: Meu senhor, por favor, mais respeito! Este (sua voz treme de emoção) é P., o dono da cadeia que inclui nosso restaurante. Ele veio nos prestar uma esperada visita.
A.: Ah, sim? Pois ele vai gostar de saber que essas tradições sem sentido acabam de fazê-lo perder um cliente.

P. se aproxima devagar. A. olha para os lados: todos os demais clientes estão ajoelhados diante de suas mesas. Quanto volta a olhar para P., este está bem à sua frente, e olha-o nos olhos. A mão de P. se ergue até o seu rosto e o acaricia.

P.: Faz, filho. Lê para mim.

A. olha para P. por algum tempo, e depois para C., que lhe estende mais uma vez o panfleto. A. o pega e lê em voz alta:

A.: Creio no-
C. (interrompendo): Ajoelhado, por favor.

A. olha para os quatro, e depois ao redor da sala. As pessoas, a maior parte uma ou duas dezenas de anos mais velha do que ele, o incetivam com sorrisos iluminados e acenos. A. sacode a cabeça e se ajoelha à mesa, diante da tigela de müesli e do pote de mel. Recomeça a ler.

A.: Creio no Mel, todo-poderoso, todo-delicioso, o Mel que salva a todos os nossos paladares, o Mel que era antes que tudo o mais fosse- Como assim, antes que tudo o mais fosse?
B.: O Mel é eterno. Sempre foi, sempre será.
A.: Olha, eu sei que mel não estraga, mas mesmo assim-
B.: O senhor não deve sentir medo. O Mel é bom. O Mel era antes de tudo, e continuará sendo quando tudo estiver terminado.
A.: E as abelhas?
B.: Como assim?
A.: Esse mel não é de abelhas?

Burburinho na sala. C. se coloca entre A. e B., furioso.

C.: Como?
A. (dando de ombros): O mel, ué. Não é feito de abelhas? Vocês não têm um fornecedor?
C.: O Mel sempre esteve entre nós. Sem o Mel, não estaríamos aqui.
A. (rindo): Olha, acho que é mais certo dizer que sem o apicultor o mel não estaria aqui.

Cliente (uma senhora frágil, de vestido rosa com bolinhas azuis, brincos de argola, um grande colar de pérolas e muita maquiagem, que se levanta e aponta um dedo firme para A.): Herege!

A. se levanta e vira-se na direção do grito, mas não tem tempo de dizer nada: dois senhores fortes e o garçom o agarram e arrastam-no até a porta. A. tenta se desvencilhar, mas outros homens o seguram, socam-no, estapeiam-no. C. abre a porta e A. é arremessado para fora.

P. (segurando com a mão direita o pote de mel da mesa de A.): Perdoai-lhe, Senhor, ele não sabe o que faz.

Do lado de fora, A. olha pela janela, mas as pessoas de dentro não prestam atenção: aqueles que se ergueram voltam a se ajoelhar, e todos voltam a comer seu müesli com mel. A. sabe que provavelmente jamais poderá entrar no restaurante de novo, mas, além da sua curiosidade insaciada, sente também um grande alívio. Olhando as tigelas, vê que a maioria dos clientes do restaurante usa muito mel, mel demais; segue pela calçada pensando que aquele müesli deve ficar enjoativo de tão doce.

Escolha seu papa

Aqui. Depois prepare sua torcida.

Assim não dá

Que mundo é esse em que um jogador de futebol argentino não pode xingar um jogador de futebol brasileiro com epítetos racistas sem ser preso? Cadê o fair play dessa gente? Quem assistiu ultimamente a jogos narrados por Galvão ou Galvãozinho sabe que a partir do meio do ano carrinho é falta pra cartão vermelho, mas periga de aqui no Brasil dar cadeia também.

Monday, April 11, 2005

Pretensão

Nos comentários a um dos últimos posts do blog que realmente importa, surgiu uma discussão efêmera sobre megalomania ou, para usar um termo menos megalômano, pretensão. O que me dá uma esperada deixa para expor minha opinião sobre o assunto.

Em primeiro lugar, vale a pena tirar a semântica do caminho. Quando a maior parte das pessoas critica alguma coisa por ser pretensiosa, a crítica normalmente é não à pretensão em si, mas ao fracasso de não suceder em tudo o que se pretendia. Exemplo: a construção das pirâmides do Egito não foi, de acordo com esta definição, um ato pretensioso, pois os faraós que o desejaram tinham meios de consegui-lo. Um escravo egípcio que quisesse construir uma morada de três lados para o seu cadáver, por outro lado, seria certamente acusado de pretensão.

A pretensão do escravo, porém, não é maior nem menor do que a do faraó. A diferença está na capacidade de ambos para transformar a pretensão em ato. Daí talvez siga que o único megalomaníaco da história é o escravo, que deseja algo tão além do seu alcance; o faraó, pelo contrário, sabe muito bem o que ele pode conseguir - embora talvez não seja tão difícil limitar suas possibilidades quando é possível fazer quase tudo.

O que importa não é a pretensão pura, e sim a relação entre pretensão e capacidade - e mais, a percepção desta relação. Se eu sou um escritor esforçado, com um estilo razoável mas sem muito talento para desenvolver personagens, não deveria tentar escrever o Grande Romance Americano. Poderia, talvez, ficar nos contos, que exigem menos fôlego. Vôos mais altos fariam minhas asas desmanchar.

Por outro lado, se Ícaro estava errado por ir além de onde poderia, Gagarin também o estaria se tivesse ficado em casa. Pessoalmente, respeito mais as pessoas que tentam ir além do que lhes é possível do que aqueles que operam bem abaixo das suas possibilidades. Pelo comentário que deixou lá no blog do Tija, o Saud discorda, e ele tem um bom argumento: talvez seja mais corajoso reconhecer a própria impotência do que ignorar suas limitações. Mas ainda acho que se fulano pensa que é um gênio, tem mais é que tentar descobrir a cura para o câncer, ou escrever o romance definidor de uma geração, depende do gosto do sujeito. Provavelmente ele não é gênio coisa nenhuma, mas vale tentar. Na pior das hipóteses, é um livro ruim ou uma teoria infundada a mais no mundo; na melhor, é uma revolução.

Aos serviços

Pois é, vamos tentar tirar este blog do coma. A grita popular foi comovente: três, sim, três pessoas pediram posts novos, duas delas em público, na área de comentários do post engraçadinho sobre o blog moribundo, uma em privado, no messenger, não faz nem duas horas. Então, aqui estamos.

Uma tentativa de retorno já foi feita sexta-feira, mas o Blogger não cooperou: quando ia salvar a primeira parte do texto, deu um erro qualquer e perdi tudo. Sempre escreva primeiro no Word, é o que sempre digo quando essas coisas acontecem - e depois esqueço tudo e decido viver perigosamente, como agora, escrevendo diretamente no site do blog. Crazy me.

O post de sexta era sobre o papa, ou mais exatamente sobre a morte do papa, ou mais exatamente ainda sobre a morte do papa ser o evento mais noticiado da história. Começava com umas gracinhas a respeito do método de cálculo para definir o que é mais noticiado (a parte que escrevi e perdi) e depois passaria para tópicos mais sérios, como a influência do gosto e vontade do público na definição de qual notícia merece destaque. Mas parece que perdi o timing: ao enterro do papa seguiu-se um fim de semana movimentado, com o casamento o príncipe Charles, a vitória sem som da Daiane, a virada do Volta Redonda (aliás, parabéns, comentadora). Mesmo no Vaticano devem estar falando mais sobre o próximo papa do que sobre o último. Rei morto, rei posto. Mas eu fiquei sem assunto.

Vejamos. O último post, sobre o blog moribundo, foi no dia do meu aniversário. Obrigado, não precisava. Poderia escrever algo sobre a inadequação de dar parabéns a alguém no dia do seu aniversário - não sei por que sobrevivência merece aplausos, a não ser em casos extremos - mas é assunto batido. Para comemorar, fui ver Herói, que achei muito ruim. Um pouco por minha culpa: fui ao cinema com muita expectativa e não me dei bem com o estilo chinês de atuação e desenvolvimento da história. Me fez pensar num post sobre as circunstâncias que afetam as notas para filmes, livros e afins: tivesse eu visto o filme num Festival, sem saber do que se tratava, ele certamente mereceria um 2, talvez um 3 se o dia estivesse ensolarado; da forma como as coisas se passaram, o filme recebeu um zero que depois, magnânimo, transformei em 1. Mas esse post foi tão adiado e ficou tanto tempo passando pela minha cabeça que perdeu a graça.

No dia seguinte terminei de ler O inocente, do Ian McEwan. Um 4 feliz, cravado. Um post sobre Ian McEwan e J. M. Coetzee, talvez os melhores escritores do mundo hoje, está na minha cabeça há algum tempo, mas por algum motivo dele não enjoei. Deve sair em algum momento, aguardem, aguardem. Depois li Le voyage d'Anna Blume, do Paul Auster, que está abaixo dos dois supracitados mas é muito bom também. Um 3,5. Em seguida, li Nada de novo no front, que já gerou inúmeras piadinhas sobre seu preço aviltante, e gostei, embora menos. Circunstâncias de novo: a maior parte do livro foi lida em ônibus, no trajeto casa-trabalho ou trabalho-casa, momentos não de todo adequados para a laitura porque me encontro, no primeiro caso, cansado por ter acordado cedo, e no segundo, com dor de cabeça depois de horas olhando para a tela de um computador. Se bem que gostei mais do fim, lido nesse esquema, do que do começo, lido em casa sábado passado. Hmm.

E depois li Doctor Copernicus, primeiro romance da Revolutions trilogy, comprada em volume único na Hodges Figgis, a já citada melhor livraria em que já entrei, na Dawson Street, em Dublin, por 4,99 euros. Escrita por John Banville, irlandês, o que garante simpatia imediata. Um belo livro, que consegue a um só tempo retratar de forma vívida a sociedade e as questões da virada do século XV e tratar de problemas atuais e, por que não?, universais. Post sobre romances históricos descartado após um primeiro instante, por ignorância do autor sobre o assunto em questão. O segundo romance da trilogia, Kepler, foi iniciado hoje de manhã.

Acho que é isso. Assiti também a Leis da atração e Wall Street, 1 e 2 respectivamente (post sobre a mania de dar notas provavelmente a caminho), mas não acho que valha a pena me alongar sobre qualquer um deles. E houve outros eventos, como uma namorada sem sisos e um churrasco de aniversário, mas este post já está perigosamente próximo do estilo diário online que muitos blogs medíocres assumem. Encerremo-lo, pois. E tentemos escrever mais.