Tuesday, May 31, 2005

Dez livros

Deve ter sido para compensar a ausência na Bienal. Hoje à tarde, depois de um belo almoço japonês com o pintor alemão existencialista Daumier Smith, passamos no Berinjela para um pouco de shelf-shopping (mais sobre isso no futuro, talvez). Como o atarefado pintor tinha que voltar para o trabalho, mal deu tempo de olhar as estantes; assim, após uma decepcionante passada no Brasileira, voltei ao Berinjela. Uma hora e quarenta e cinco minutos e setenta e quatro reais depois, saí do sebo a caminho das barcas com mais dez livros na sacola. Uma delícia. Agora, como estou com vontade de escrever no blog mas não tenho assunto (hmm, tem o shelf-shopping), e para deixar o amigo pintor com inveja, um pouco sobre cada aquisição:

Armadilha para Lamartine, de Carlos & Carlos Sussekind. Há algum tempo o livro estava para ser comprado, mas o preço da nova edição, da Companhia das Letras, sempre me intimidava. É brasileiro, mas dizem que é muito bom. Ombros altos, de um dos Carlos, é interessante. Veio com três buracos de traça.

Vestígios do dia, de Kazuo Ishiguro. Aquele do filme - aliás, a capa é do filme, Anthony Hopkins olhando para o nada ao lado de Emma Thompson, virada meio que na direção de Hopkins mas também olhando para outro nada. Já li Uma pálida visão dos montes, que era, hmm, interessante. Mas era um Ishiguro japonês, esse é bem inglês. Nada mais inglês do que aquele mordomo.

A cor do sangue, de Brian Moore. Um daqueles autores que estão sempre em prateleiras por aí, mas nunca atraem muita atenção. Mas é irlandês, sempre uma vantagem. Mas é uma compra no escuro, comme il faut em casos de grandes farras alfarrábicas.

A mulher do próximo, de Gay Talese. Uma grande reportagem sobre sacanagem - se não me engano, o bravo jornalista teve até que marcar encontros profissionais com representantes da mais antiga profissão. Quase lhe custou o casamento. Um How not to do guide se eu quiser manter o meu.

The moon and sixpence, de Somerset Maugham. Preenchendo lacunas, comme il faut aussi.

O destino bate à sua porta, de James M. Cain. Um dos livros que estavam me perseguindo não faz muito tempo, lembram? Pois então.

Aqueles cães malditos de Aquelau, de Isaias Pessotti. Recomendação do blogueiro anteriormente conhecido como Alexandre Cruz Almeida. Eu sei, eu sei, vocês acham ele chato, mas fiquei curioso. Brasileiro também, mas tem um bom primeiro parágrafo para compensar. A teoria do primeiro parárafo, recentemente criada, talvez também mereça um post.

Fogo pálido, de Vladimir Nabokov. Uma aquisição problemática: os tradutores admitem, numa nota ao fim do volume, que fracassaram na tradução do longo poema que é a primeira parte do livro, o que os levou a suprimuir alguns dos comentários que formam a segunda parte. Dizem eles que nada disso interfere com o andamento da história e tal, mas sei lá, já caí nessa em Algumas aventuras de Sílvia e Bruno. Como estava só cinco reais, e as folhas em branco estão recheadas de desenhos e rabiscos infantis, pensei the hell with it.

Cada um por si, de Beryl Bainbridge. Já li Os aniversariantes, sobre a última expedição de Scott ao Pólo Sul; este é sobre o Titanic, mas pré James Cameron. Acho que os dois livros são de 1996, ela devia estar passando por uma fase desastres. Tradução, salvo engano, de um dos Carlos Sussekind lá de cima.

La gouvernante italienne, de Iris Murdoch. Ia comprar O mar, o mar, mas estava mais caro, era mais pesado e eu não tinha escolhido nada em francês. O fator Irlanda de novo.

Foi isso. Deve ser a última vez até a França, prometo.

Aprendendo com o cinema - Aula 1

Como agir em um jantar com a família da sua namorada

Durante o jantar: O maior elogio que pode ser feito à qualidade de uma refeição é o silêncio geral da mesa, enquanto todos se concentram em limpar seus pratos. Mas estar de boca cheia não impede ninguém de externar audivelmente seu prazer. Caso você queira ser muito simpático, faça como Bill Murray em Nosso querido Bob: a cada garfada, feche os olhos, balance suavemente a cabeça (Stevie Wonder style) e dê grandes gemidos de entusiástica aprovação: "Hmmm", "Hmmmmmm", "HMMMMMMMMMMMM". Com sorte, a dona de casa e seus filhos vão se divertir muito com você. O único porém é que o anfitrião pode ficar nervoso, especialmente se ele tiver um importante compromisso no dia seguinte.

Depois do jantar: Às vezes ser simpático e ficar calado num canto não basta. Alguns parentes do seu par querem saber quem é você, o que você faz, quais são seus planos para o futuro. Se alguém lhe perguntar esta última questão, não se intimide nem murmure bobagens sobre mestrado ou uma carreira no mercado financeiro: lembre-se de John Cusack em Say anything..., respire fundo e diga, de preferência em inglês:

I don't want to sell anything, buy anything, or process anything as a career. I don't want to sell anything bought or processed, or buy anything sold or processed, or process anything sold, bought, or processed, or repair anything sold, bought, or processed. You know, as a career, I don't want to do that.

Dependendo do efeito da resposta, complete dizendo que você está muito interessado em kickboxing, o esporte do futuro.

Próxima aula: Estamos na Guerra Fria. Devido a uma falha no sistema de defsa americano, um avião sobrevoa a Rússia para atacar Moscou com uma bomba atômica. Você é o presidente dos Estados Unidos. O que você faria? Possibilidades cômicas e trágicas em Dr. Fantástico e Limite de segurança.

Wednesday, May 25, 2005

Quinze minutos do segundo tempo

Boy, was I really wrong.

Dez minutos do segundo tempo

Boy, was I wrong.

Tuesday, May 24, 2005

Intervalo

Comentaristas brasileiros sobre o terceiro gol do Milan no Liverpool: "Impressionante o toque do Kaká!" Comentaristas argentinos sobre o mesmo lance: "El toque de Kaká fue muy bueno, pero el chute de Crespo fue excelente!"

***
É sempre triste, mas especialmente em jogos decisivos, o momento em que um time decide que não tem mais chance de ganhar a partida e resolve apenas se defender para evitar um vexame maior. Ainda não aconteceu, e por isso o Milan fez o terceiro gol. Mas acho que em algum momento do segundo tempo os ingleses vão dar de ombros e voltar para a defesa.

Roteiro 2 - O retorno

A Raquel escreveu um comentário no post sobre roteiro aí embaixo que reproduzo aqui, tintim por tintim:

Murtim,
Eu tb jah escrevi um roteiro. Ele se chamava Uma vida em chocochips e gracas a Deus, perdi meu HD depois. Devo ter uma copia em papel em algum lugar do meu quarto mas eh uma bosta, o roteiro. Eu o escrevi pra uma aula de Teatro e Comunicacao, cujo trabalho do periodo era fazer ou a programacao visual de uma peca, ou um release, ou um roteiro de uma propaganda, ou um roteiro de um curta, etc. Acho que a ideia da professora - boa, ate - era deixar com que cada um fizesse oque, a principio, sabia fazer melhor. Como eu nao sabia fazer nada daquilo mas gostava de escrever, escolhi o roteiro.
Era uma epoca estranha, a minha. Eu fazia estagio e usava sapatos de bico fino e etc. Era um ET na sala e muito mal vista, obviamente. No inicio, deixei as hostilidades de lado e olhava pra baixo cada vez que um colega de classe me observava com desdem. Mas em 3 aulas eu ja detestava aquele povo e o achava muito, muito burro. E nao achei isso pq o ambiente era hostil. A pura verdade era que eles eram burros mesmo, e tao burros que achavam que o tenis all star deles nao denunciaria essa picaretagem. Imagem...

Enfim, eu me diverti horrores fazendo o roteiro. Nao me lembro, ate hj, de ter tido tanto prazer em fazer um trabalho pra faculdade - mesmo pq, aquele de Estatistica e Tpe era sofriveis, nao> Entreguei o trabalho pra professora mt orgulhosa de mim mesma. Recebi um chato de um 8.0 de volta. Eu me revoltei um pouco por ela ter sido tao cruel e injusta, e ter dado 9.5 pra uns releases bobocas, umas porcarias assim. Ela nao premiou minha audacia e minha coragem. EuU era a garota do sapato de bico fino, pombas! Ela tinha que olhar em volta e ver o bando de idiotas que ele estava cultivando. Fiquei meio triste no 1o dia e, no final, tb odiava a professora. Ela disse que `Faltava acao` que qdo ela leu `parecia coisa estilo Amelie poulain`. Foi ate um elogio essa critica mas eu a odiei mesmo assim. Depois disso, nunca mais escrevi um roteiro, nem escrevi nada.
Nao sei pq dei essa volta toda...Acho que queria contar uma historia. Bem, pra esse troco, tive que ler um livrinho de como escrever um roteiro e conviver com essa linguagem desidratada. (otimo adjetivo!) Era chato mesmo ter que parar e descrever as cenas assim, fria e secamente, e interromper a imaginacao e escrever os nomes em maiscula, o lugar, o dia, a hora do dia, tudo isso. Depois pensei que esse era o trabalho de um roteirista e que ele devia deixar td essa coisa vida ai que vc falou pro safado do diretor. Se ele for mt safado, vai escolher exatamente o quao ereto estava Jose. Se o Jose for um ator malandrinho - melhor, se o ator que faz Jose for malandrinho - vai dar uma outra cara pra coluna do Jose tb. Sei la, um bom roteirista eh o cara que nao liga pra isso ou nenhum roteirista que se preze ve o filme que usou seu roteiro> Fiquei com mta pena dos roteiristas do mundo agora, eh uma vida meio sofrida. Acho q estou influenciada pelo Bandini...

O mais importante primeiro: um blog, Raquel, urgentemente. Pode ser como co-autora lá no fase, ou aqui se você sentir muita pressão escrevendo num blog que realmente importa; acho até, embora você tenha que perguntar pra noiva, que pode ser lá no sombreiro. Comentadores de praxe, por favor, apóiem esta campanha.

Sobre o comentário, o que eu queria comentar de volta é Depois pensei que esse era o trabalho de um roteirista e que ele devia deixar td essa coisa vida ai que vc falou pro safado do diretor. Concordo enfaticamente: roteirista, assim como diretor de fotografia ou figurinista ou 2nd unit director, é um técnico. O roteiro é um manual pra fazer um determinado filme, e por isso sua linguagem é tão fria quanto a de um manual, digamos, de televisão ou microondas.

É por isso que não entendo muito bem qual é o raciocínio por trás da escolha do melhor roteiro em premiações cinematográficas. Um bom roteiro é aquele que facilita a feitura de um bom filme: a menos que o roteiro seja lido, desconfio que as pessoas simplesmente premiam aqueles filmes que não apenas são bons, mas que parecem ser tranquilamente bons, filmes em que o esforço para se fazer um bom filme não está explícito. Um diretor deveria exultar duplamente caso seu filme ganhasse um prêmio de roteiro.

É por isso que os roteiros do Charlie Kaufman são bem menos bons do que muita gente pensa: Kaufman é um roteirista tão autoral que seus roteiros devem ser lindos no papel, mas esmagam o diretor no filme (o único que conseguiu passar por cima de Kaufman até agora foi, ora vejam só, George Clooney, diretor de Confissões de uma mente perigosa). Também por isso Billy Wilder não é essa coca-cola toda, porque ele colocava o Izzy Diamond para verificar a cada cena se os atores estavam dizendo as falas exatamente como eles as tinham escrito. Imagino que ler um filme do Billy Wilder deva ser muito divertido, mas ver não é tão bom assim.

Meu chilique contra a "linguagem desidratada" só faz um mínimo de sentido porque sou um desses jovens românticos com pretensões autorais. Se um dia esse roteiro for terminado e se transformar num filme, espero que eu consiga calar a boca e deixar o diretor fazer o seu trabalho, que é ser o artista do filme.

Saturday, May 21, 2005

Até agora

O Tija fez um post (preguiça de colocar o link) sobre os melhores filmes e livros do ano até agora, um balanço semestral impaciente. Lá vou eu também, com direito a top 5 (jamais perco uma chance de fazer um top 5):

Filmes:

1 - A vida marinha com Steve Zissou, de Wes Anderson
2 - A queda, de Oliver Nomecomplicado
3 - Oldboy, de Chan-wook Park (ou Park Chan-wook)
4 - Código 46, de Michael Winterbottom (reclama, Tija!)
5 - Closer, de Mike Nichols

Periga acontecer com Steve Zissou o mesmo que aconteceu com A vida é um milagre ano passado: ganhador tanto da Murta quanto do Tony, o filme acabou esvaziando a premiação do MurTony de Ouro. Mas os dois merecem.

Livros:

1 - Amor para sempre, de Ian McEwan
2 - Age of iron, de J. M. Coetzee
3 - O inocente, de Ian McEwan
4 - Cães negros, de Ian McEwan
5 - La condition humaine, de André Malraux

Sérias possibilidades de declarar McEwan hors concours, como eu achava que a Academia havia feito com o Chaplin até o Saud mostrar o texto da Wikipedia (que não é a coisa mais confiável do mundo, mas enfim). Ou então deixo o Amor para sempre lá no alto (duvido que consigam tirá-lo de lá) e instituo uma regra temporária, só um livro de cada autor no top 5. O que importa é que o homem é fera.

Friday, May 20, 2005

Estilo

Há palavras que uso mais do que manda o bom tom. Mas, por exemplo. Uso muito mas. Também uso muito coisa, que o bom tom manda não usar nunca. Mas gosto de coisa. Nada mais vago, mais curinga. Talvez por isso seja falta de educação: uma palavra-curinga é uma palavra de uso fácil e boas maneiras consistem em evitar tudo o que seja fácil, como colocar os cotovelos na mesa.

Des ennuis

Quand il faut écrire une rédaction pour ma classe de français, je deviens souvent un peu désespéré. Si je n'achève pas un simple texte à propos du rajeunissemen de La Joconde, comment je pourrai faire, dans six mois (putain, six mois), une dissertation à propo de, disons, le marché cinématographique européen? Alors, il faut écrire davantage. Mais écrire dans une langue qu'on ne maîtrise pas est beaucoup plus difficile que la parler ou la lire, ou même la comprendre. Je me sens toujours pensant en portuguais, mais ce que je veux écrire ne peut pas toujours être traduit sans modifier la tournure de phrase. Et ce peut-être un peu comme La disparition, roman de Georges Perec dont Laranja (Orange?) a parlé ici: j'écris des phrases trop compliqués pour exprimer des pensées très simples, mais pas parce que il me faut une lettre, ce qu'il me faut c'est les outils de la langue, car même si je les connais de lire je ne sais pas comment les utiliser.

Enfin, il faut essayer, et faires des erreurs (je suis sûr qu'il y en a beaucoup là-dessus), et essayer de nouveau. Mais cela prend du temps. Il faut surtout m'appercevoir que six mois c'est pas longtemps, qu'il faut étudier, parler, écouter, et de nouveau, de nouveau. Alors. C'est le premier texte en français, mais j'espère que ce ne sera pas le dernier. Au moins Raquel peut le commenter.

Terra em transe

Ontem poderia ter sido um dia muito importante na minha vida: coloquei uma das minhas maiores convicções à prova, e se ela não resistisse é provável que eu me considerasse hoje uma pessoa bastante diferente. Talvez não bastante, mas razoavelmente diferente. Quando você souber do que estou falando vai achar que é sacanagem, mas não é, ou melhor, é só um pouco. Defendo algo seriamente que a melhor forma de entender e conhecer uma pessoa é examinando seus gostos artísticos: que livros lê, que filmes vê, que músicas ouve, gosta ou não de escultura, vai ou não ao teatro, que partes sublinha num livro. Sou uma pessoa que não gosta do Glauber Rocha, do culto a Glauber Rocha, das idéias e opiniões de Glauber Rocha: uma pessoa, enfim, que não gostaria dos filmes de Glauber Rocha quando os visse. Ontem, na pré-estréia de Terra em transe, afinal chegou a hora de ver um filme do diretor. E felizmente eu continuo o mesmo.

Acho que foi a primeira vez que saí do cinema no meio de um filme (já dormi no cinema pelo menos duas vezes, mas foi por sono e não pelo filme ser chato). Já aguentei muita chatice no cinema, incluindo, por incrível que pareça, filmes piores do que Terra em transe (Rocha que voa, do filho do Glauber, vem à mente); se a Clarice não estivesse comigo eu provavelmente ficaria até o fim, mas isso não me faria nem um pouco mais feliz. Numa das crônicas de 31 canções Nick Hornby divide com seus jovens leitores a excitante descoberta de que, sim, você pode ir embora, e diz que é delicioso jantar às nove quando se achava que a próxima refeição seria às onze. Ontem à noite, escovando os dentes ao lado da minha noiva, entendi exatamente o que ele quis dizer.

Talvez, como a mãe da Clarice tentou nos convencer ontem à noite, Glauber fosse bom na sua época, ou seja bom para quem a viveu. Eu duvido. Glauber deve ser um caso extremo do efeito Labirinto, aquele filme com o David Bowie e uma jovem Jennifer Connely, de que eu lembrava como um dos mais divertidos da minha infância e é bem ruinzinho.

A parte técnica do filme - som, montagem - tem um aspecto espantosamente amador (só a fotografia é bonitinha). Não seria um obstáculo intransponível, se a história fosse interessante e bem contada; como não é nem uma coisa nem outra, o desleixo salta aos olhos. Fui no IMDB checar: Terra em transe é de 1967, sete anos depois de Atirem no pianista, um dos melhores filmes do Truffaut. No filme francês há um carinho, um amor pela história contada que fazem o espectador perdoar os defeitos técnicos, o som meio estranho, alguns atores ruins. Sete anos depois, Glauber faz um filme que é tecnicamente muito pior e não apresenta nada para o público além de slogans ingênuos e bregas sobre a força das massas e o fim da revolução.

A encenação é teatral, mas não pense em Dogville e sim num diretor de teatro que fica sabendo que vai ter que transformar a peça em que estava trabalhando num filme e resolve não mudar nada, nenhum diálogo, nenhuma recomendação aos atores, nenhuma entrada de cena. Quando Jardel Filho lamenta a morte de um pobre coitado assassinado a mando de um coronel e há um corte para a mulher do morto contando aos vizinhos como foi a tocaia dá pra ver como funcionaria no teatro: Jardel Filho corre para a beira do palco, fala do morto, e de repente a mulher entra em cena, olhos para o fundo do teatro, e conta o que aconteceu. Talvez ficasse bom. No cinema fica horroroso.

Acima de tudo, é um filme chato. Chato na sua pretensão, no seu elitismo, na sua breguice, nos seus excessos poéticos. E talvez o grande problema do cinema brasileiro não seja a falta de verbas ou público, ou de apoio do governo ou da iniciativa privada, e sim a coroação de um chato como melhor cineasta do país. A fila estava cheia de estudandes de comunicação, mas algumas pessoas saíram do cinema antes de nós: é pouca coisa, mas ajuda a ter esperança.

0/5

Thursday, May 19, 2005

Agruras de um jovem escritor (de roteiros)

A coisa mais chata de tentar escrever um roteiro (só vou acreditar que estou de fato escrevendo um roteiro, e não apenas tentando, quando terminar) é descrever tudo naquela linguagem desidratada.

INT. SALA DE AULA - DIA.

Uma sala de aula repleta de ALUNOS com a cabeça deitada sobre a carteira escondida pelos braços cruzados. Apenas JOSÉ, na primeira fileira, olha fixo na direção do PROFESSOR.

PROFESSOR
Lênin considerava Stalin despreparado.
(Aliás, um professor meu realmente disse isso um dia. Suponho que o despreparo de Stalin seja para comandar a União Soviética, mas não sei, não estava prestando atenção e ouvi essa frase por acidente. Pode ser que fosse esse o motivo para Lenin não ter escolhido Stalin para bater o pênalti decisivo na pelada semanal de bolcheviques contra mencheviques.)
Ou:
Os alunos não aguentavam mais: os cinquenta minutos de aula pareciam não ter fim. Foram desistindo um a um, e agora quase todos apoiavam as cabeças esconidas pelos braços cruzados sobre as carteiras, tentando fugir de alguma forma da aula sobre Revolução Russa (ou o Torneio de Pelada de Moscou). Apenas José se mantém ereto e atento, olhando fixamente a boca do professor pronunciar a frase que parecia um sortilégio: "Lenin considerava Stalin despreparado".
Sortilégio não é a palavra, mas tudo bem. Você pode até não gostar do meu estilo, mas o segundo texto não é muito mais vivo? Não é muito mais preciso na descrição da sala de aula e do torpor que a envolve? Não descreve, enfim, muito melhor a cena? Então por que usar o estilo do primeiro texto pra escrever um roteiro, ou seja, justamente pra descrever cenas? Não entendo, me submeto, mas não entendo.

Oldboy

Aviso amigo: Sempre acho melhor ver o filme ou ler o livro antes de ler a respeito do mesmo, mas em alguns casos a recomendação deve ser mais enfática, e Oldboy é um deles. Se você ainda não viu o filme, não leia o post. Ou leia, mas saiba que boa parte da graça pode estar indo pela janela. E a graça do filme é pesada, vai se esborrachar no chão. A seguir, um pouco de espaço em branco para quem estiver na dúvida pensar a respeito. Obrigado.














No fim do filme, um homem desesperado implora ao seu vingador que não execute a parte final da vingança. Se seu pedido for aeito, diz o homem, ele será o servo do outro, o escravo, o cão; e logo depois, demonstrando seu compromisso, se põe de quatro no chão e começa a latir, a engatinhar, se aproxima do outro e lhe lambe os pés. O vingador, em pé, esconde o riso com a mão sobre a boca. Ele é o único que ri: a platéia do cinema está séria, atenta e silenciosa.

Hoje em dia, infelizmente, evitar o riso da platéia em momentos inapropriados não é um feito simples. A queda não conseguiu: boa parte dos acessos de fúria louca de Hitler foram premiados pela platéia do Estação Ipanema com risadas, oh-como-ele-é-insano, oh-como-ele-é-patético. O tipo de gente que iria a uma manifestação nazista com genuíno e estúpido orgulho pela força da pátria. Mas Chan-wook Park consegue fazer mesmo os mais estúpidos assistir em silêncio. Como Réquiem para um sonho, Oldboy é um filme que esconde deliberadamente sua força durante no mínimo sua primeira hora. Quando o espectador baixa a guarda e acredita que está assistindo a um Kill Bill melhorado, o filme ataca, e todo o mundo cala a boca.

Não é a única forma por que Oldboy engana seu público. Fui ao cinema esperando um filme de vingança, e mesmo quem fosse sem expectativa alguma teria a mesma expectativa após a primeira parte do filme: um homem é preso por quinze anos; ele escapa; ele procura seu algoz. E pronto, ali está o vingador, ali está o culpado. Mas ao longo do filme as coisas mudam: outra vingança precedeu a que estamos assistindo; finalmente, descobrimos que estamos assistindo à vingança antiga, ao seu arremate brilhantemente sádico. É como assistir a um filme de golpe e descobrir que o malandro na verdade é o pato.

Dizer isso faz o filme parecer O sexto sentido, e num certo sentido parece mesmo: um final surpresa, espectadores repassando as cenas anteriores, um choque, uma história bem trabalhada. Mas Oldboy é mais, e a falta de palavra melhor me incomoda, profundo: os personagens importam bem mais, seus destinos são mais complicado, o fecho da história é incômodo. Oldboy não pára na brincadeira com o público, não é um filme-bibelô. Você sai do cinema, pega um metrô, sobe a ladeira, dá um beijo na namorada, dorme, vai pro trabalho, volta pra casa, sai com os amigos, vê futebol, tem insônia, lê um livro, dorme, vai pro trabalho, escreve no blog e o filme continua, a digestão lenta, o paladar longo. O filme continua importando.

4/5

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A crítica da Contracampo é, como esperado, horrível. Ruy Gardnier gosta do começo do filme, que eu não achei lá grande coisa, mas até aí tudo bem. O problema é quando ele passa para o fim. Em primeiro lugar, há uma crítica ao fato de que os acontecimentos no filme se encaixam bem demais, como se criar uma trama complexa e lógica seja simples e, pior ainda, inútil. Talvez seja um efeito colateral de gostar demais de Godard: a idéia de que coisas que fazem sentido podem ser interessantes se perde em algum lugar entre Je vous salue, Marie e Elogio do amor. Depois Gardnier reclama que a estrutura do filme é semelhante a Vanilla sky, Brilho eterno de uma mente sem lembranças e, por algum motivo, Quero ser John Malkovich, como se a estrutura fosse um erro em si, como se um filme fosse incapaz de fazer algo parecido com o que outro faz de forma mais competente. Talvez todos os filmes devessem ser como os do Godard. E, o pior de tudo, a crítica contém o inacreditável conjunto de palavras Panóptico que jamais se problematiza como tal. Não estou brincando, podem conferir.

Tuesday, May 17, 2005

Guerra em campo

O esporte coletivo surgiu pra substituir a guerra no imaginário popular, quando a guerra deixou de ser algo glorioso e belo com alguns detalhes desagradáveis para se tornar algo repulsivo e imoral com alguns momentos de glória. Futebol (principalmente), basquete, vôlei, rugby, you name it, são todos metáforas para a guerra. A Copa do Mundo é uma guerra curta e sangrenta, em que exércitos inteiros são dizimados numa única batalha; campeonatos de pontos corridos são guerras longas, sofridas, em que cada batalha dá ao vencedor uma pequena vantagem territorial que precisa ser sustentada e expandida por outras pequenas batalhas para levar à vitória final.

Quem diz que não gosta de futebol porque não vê motivo para assistir a vinte homens correndo atrás de uma bola não tem imaginação: não consegue relacionar o cruzamento de Del Piero, de bicicleta, para o gol de Trezeguet que deu ao Juventus a vitória contra o Milan, em Milão, naquela que foi provavelmente a partida decisiva do Campeonato Italiano 2004/2005, com um ataque desesperado de um soldado a um ninho de metralhadoras, desarmando a principal defesa das linhas inimigas e permitindo a conquista da Normandia pelos aliados. Quem gosta tanto de futebol a ponto de bater em quem não torce para o seu time, por outro lado, não sabe impor limites à sua imaginação. No primeiro caso, a metáfora não é compreendida; no segundo, ela invade a realidade.

Podem dizer que a ausência de carnificina no esporte o torna muito menos glorioso do que a guerra: o sacrifício de um jogador de vôlei que finge cortar a bola para atrair o bloqueio adversário enquanto outro jogador faz o ataque é repetido tantas vezes ao longo de um jogo que muito da sua força se perde. É claro, o sacrifício de um kamikaze é muito maior, e poucos gols são tão gloriosos quanto uma morte na batalha (embora poucas mortes sejam tão gloriosas quanto aquele gol do Rondinelli); mas entre um evento glorioso e sangrento e uma representação do evento, menos gloriosa e bem menos sangrenta, fico com a aproximação.

Monday, May 16, 2005

Celeborn?

Ô Felipe, que idéia foi issa de usar um pseudônimo tolkieniano? O Tija já tava todo esperançoso, achando que era uma gaúcha, que o nome tinha sido tirado de algum conto obscuro do Pynchon. Assim o rapaz se chateia.

Friday, May 13, 2005

Regras inúteis para agregar notas

O mais importante é deixar as regras claras. Às premissa, senhores:

- O modelo básico é a Teoria da Fase de Ouro (TFO): apenas a melhor fase da obra do artista deve ser considerada para a agregação. Para calcular a nota do Pink Floyd, por exemplo, seriam descartados os discos pós "The wall"; para a nota dos Beatles, tudo antes do "Revolver" seria cortado. Alguns cortariam o "Pablo honey" da nota do Radiohead, outros cortariam "A morte passou por perto" e mesmo "De olhos bem fechados" da nota de Kubrick. A FO deve conter no mínimo três obras. A nota é calculada como uma média das notas das obras da FO.

- Dentro da FO, é permitido um descarte, desde que a FO tenha cinco ou mais obras. Caso a FO tenha 10 ou mais obras, são permitidos 2 descartes, e assim sucessivamente, 1 descarte adicional a cada cinco obras. (Esclarecendo: caso a FO tenha cinco obras, pode-se descartar uma delas e fazer o cálculo com as 4 restantes. Não se trata de descartar uma sexta obra uma vez que haja cinco para fazer os cálculos.)

- A Nota Final é a multiplicação da Média das Notas pela proporção entre a FO e a Obra Total acrescida de uma unidade, ou seja, NF=MN*(1+(FO/OT)). Observe-se que nesse caso as obras descartadas não são consideradas como integrantes da FO: um artista com 10 obras e uma FO de 8 obras terá uma NF=MN*(1+(8/10))=MN*1,8.

Mais alguma regra? Acho que essa última é um belo incentivo para incluir na Fase de Ouro o máximo de obras. Se pensar em mais alguma, ou alguém der uma sugestão boa, faço um update neste post.

3

À moda de um velho chefe mafioso de voz rouca, o Tija me intimou com uma sugestão a escrever um post sobre as tais três coisas de que alguém pode gostar. Discordo de um ponto do seu post: no meu caso, não há paixão secundária; pelo contrário, há uma que se sobressai.

Mas vamos lá. Até uns 14 anos, provavelmente funcionava assim:
1 - Música (Chico Buarque, mais tarde Legião Urbana e Pink Floyd; antes, para minha vergonha, sambas-enredo)
2 - Literatura (Rubem Fonseca, Machado de Assis e, bem no começo, Monteiro Lobato)
3 - Cinema (Chaplin, cinema americano semi-mainstream pós-década de 50)

Comecei a gostar de Chico Buarque na quarta série, quando ouvi "Construção" num churrasco na casa de amigos do papai em Petrópolis. Naquela época a vitrola lá de casa ainda existia; achei na coleção da minha mãe uns cinco ou seis discos do rapaz e passava as tardes, após voltar da escola, trancado num quarto semi-vazio de casa, ouvindo-os e reouvindo-os. Pensando no assunto, lamento não ter sido capaz de deixar o Chico de lado de vez em quando e explorar os demais discos da casa: eu teria conhecido melhor Beatles e Rolling Stones, por exemplo, bem antes do que de fato o fiz. Mas havia um lado bom nessa minha tara: enquanto meus colegas de turma ouviam Pennywise, NOFX e sabe-se lá o que mais, eu ficava na minha MPB e me tornava capaz de discordar do grupo com desenvoltura e simplicidade. Legião e Pink Floyd vieram mais tarde, e mais ou menos ao mesmo tempo, na sexta ou sétima série. Gostava muito de Legião quando o Renato Russo morreu, mas acho que àquela altura eu já estava embriagado de Radiohead.

Meu gosto por cinema nessa época era basicamente moldado no do meu pai. De quinze em quinze dias, minha irmã e eu íamos para o seu apartamento passar o fim de semana, e quase sempre passávamos na Video & Cia. de Copacabana ou na locadora do Estação Cinema 1 para pegar alguns filmes. O número variava de acordo com a promoção do momento, mas nunca era menos de três, cada um escolhendo um. E víamos tudo, em geral um na noite de sexta, um na noite de sábado e o derradeiro na manhã de domingo. Até aquele momento, era raro eu ir sozinho ao cinema.

A partir dos 15 anos, aconteceu o seguinte:

1 - Cinema (Qualquer coisa, desde que passasse no Estação Icaraí)
2 - Música (Radiohead, Velvet, Napster)
3 - Literatura (Joyce!)

Talvez seja injusto esse terceiro lugar para os livros: até eu passar para a faculdade, nada me marcou tanto quanto ler Ulisses. Mas, tirando esse livro, não me lembro de outro que tenha lido no período.

O cinema era outra história. Um belo dia, fazendo um trabalho em grupo com três meninas, fiquei de saco cheio das fofocas e resolvi dar uma volta para espairecer. Acabei topando com o Estação Icaraí e vi Mera coincidência, aquele com Robert DeNiro e Dustin Hoffman e roteiro de David Mamet. Pouco depois, fui ao mesmo cinema assistir a Atirem no pianista, do Truffaut, e Trinta anos essa noite, do Louis Malles. E decidi fazer uma roleta russa cinematográfica: toda semana, não importava o filme que estivesse passando, lá estava eu no Estação Icaraí. Quem conhece o circuito Estação pode pensar que não é uma roleta russa tão perigosa assim, mas a falta de público pra cinema menos comercial em Niterói faz com que o Estação às vezes apele: foi lá que vi Entrando numa fria e As loucas aventuras de James West, e meu compromisso com o cinema acabou quando eles exibiram Meu querido marciano. Mas continuo gostando muito de lá, e ir ao Estação Icaraí sozinho, sentar na minha poltrona habitual (última fila, penúltima cadeira) e ficar olhando as pessoas entrarem na sala antes de as luzes se apagarem me dá um prazer nostálgico que não me é habitual.

Quando entrei na faculdade, a literatura provavelmente ultrapassou a música, principalmente por causa de Pynchon, Fante e Faulkner. Mas foi uma mudanças pequena. A mudança grande veio um pouco depois, e a situação atual é:

1 - Clarice
2 - Literatura
3 - Cinema

O Tija, que já não gostou do meu post sobre Simplesmente amor, vai detestar esse momento escancaradamente brega. Mas nada pode ser feito. A Clarice foi uma mudança extraordinária na minha vida; foi ela quem suplantou o Ulisses, e embora muita gente ache essa comparação típica de alguém com problemas mentais, na minha cabeça é um elogio tremendo. Foi ela quem me fez gostar de Beatles, quando eu já começava a me orgulhar de ter uma lacuna tão conspícua na minha discoteca. Mas o que realmente importa é que ela é a pessoa que eu mais conheço, que eu mais quero que me conheça, com quem eu posso falar durante horas sobre qualquer assunto, ou ficar calado durante horas sem fazer nada, ou olhar durante horas, ou qualquer coisa durante horas. Ficar longe da Clarice é um pouco como desatarraxar um braço e deixá-lo em casa antes de sair pra rua. Às vezes, como no fim de semana passado, penso que um tempo longe dela pode servir para ler um pouco mais, ou ver filmes, ou pegar músicas na Internet; e fiz tudo isso, só pra descobrir que mesmo pegar música ou ler Philip Roth não é tão legal se a Clarice não estiver por perto. Ela não precisa estar falando, ou ao alcance da minha vista: estar por perto basta. A atmosfera muda, sei lá. Sou viciado na minha noiva.

A literatura e o cinema estão, no fundo, lado a lado; a literatura ganha pontos porque conheci Ian McEwan recentemente, mas se eu encontrar amanhã um diretor sensacional de quem eu não tenha visto nada ou quase nada - Murnau ou Buñuel, por exemplo - as coisas podem mudar. A música ensaia um retorno que sinto que será bem-vindo. O problema é que, como a Clarice não vai sair de onde está, nesse caso eu teria que pedir permissão ao Tija para fazer uma lista com quatro coisas em vez de três, e aquele jeito mafioso de sugerir assuntos me deu um medo danado.

Espumando

Está lá no Rio Show de hoje, matéria de capa: "A Bienal de cada um". A mesma matéria, a cada Bienal, a cada Festival do Rio. Na revista, sugestões de palestras de acordo com o perfil do freguês, com ilustrações do Cruz. Você é antenado, mulher, descolada, boêmio ou intelectual? Será que alguém consegue, total e exclusivamente, se encaixar numa dessas categorias? Será que não há nada melhor para pôr nas páginas do Rio Show do que mini-roteiros falsos que ninguém vai usar? Malditos, malditos, mil vezes malditos.

Thursday, May 12, 2005

Má fase

Estou escrevendo muito mal hoje. (Só hoje, Lucas? Ah, não enche.) Escrevi dois comentários, um ali e outro acolá, e os dois estão horríveis. Vão e leiam, e aproveitem para ler o resto dos dois blogs. Acho melhor descansar o resto do dia, pra ver se amanhã o talento volta. (Talento? Quáquáquá. Maldito.)

Wednesday, May 11, 2005

Movie clichés

In jail, there must be a brutal guard and an evil scheming warden.

The phone rings. Caller says, "You better check out what's on the news on Channel 13". He turns on channel 13 and gets the report from the beginning.

Two guys or a bunch of guys go at it, repeatedly bashing each other in the face with massive blows, or hitting each other with chairs, sticks, refrigerators, whatever -- and they go on doing this, sometimes for minutes at a time.

Movie people can get cabs instantly, unless they are in danger, whereupon no cab can be found.

You never have to use the space-bar when typing long sentences.

You're very likely to survive any battle in any war, unless you show someone a picture of your sweetheart back home.

If you're a high school student in a film, you will always get one of the preferable eye-level lockers.

Spaceships always fly perpendicular to the same axis. When two spacecraft encounter each other, they're always aligned on a plane and never approach at odd angles.

If you're a woman in a film and have just finished a steamy lovemaking session, make sure to lay back and pull the sheets up to your neck, just like in real life.

Two total strangers, upon falling into bed together, will always reach an incredibly intense, mutual, and SIMULTANEOUS orgasm on the first try.

E mais.

Simplesmente amor ou Em defesa de um filme simples

Não tenho nada contra a pretensão, mas admiro quem é saudavelmente, até humildemente despretensioso. E não tenho nada contra filmes complicados, mas mas admiro filmes franca e despudoradamente simples.

Simplesmente amor pode não ser a tradução mais correta possível para Love actually - traduttore, traditore, essa aposto que vocês não conheciam - mas é um título que descreve muito bem o filme. É sobre amor, aquele sentimento que gente inteligente costuma tratar com cinismo por puro medo. Essa é uma das qualidades dos filmes simples: eles não têm medo de pender pro brega, de pecar por excesso de bondade. Meu lado poliana gosta dessa tendência, ainda que eu me irrite, como qualquer um, quando o filme é muito brega. Mas celebrar o amor exige muito mais coragem do que o ironizar.

Um filme simples como Simplesmente amor não está livre de defeitos: algumas das muitas histórias paralelas são tão curtas e tão desligadas das outras que poderiam ser cortadas, como a do casal de dublês ou do cara que gosta da esposa do melhor amigo. A história do inglês que vai para os Estados Unidos porque garotas americanas não resistem ao sotaque britânico entra nessa categoria, mas ela é tão deliciosamente idiota que merece ficar no filme.

Um filme simples pode dispensar vilões e tramas sofisticadas e sobreviver tranquilamente do drama de pessoas comuns. Se é para ter um vilão no filme, que ele seja o presidente dos Estados Unidos, não apareça em mais do que cinco cenas e seja humilhado pelo Primeiro Ministro da Inglaterra numa entrevista coletiva totalmente inverossímil e interpretado por Billy Bob Thornton, que parece estar desinteressado até que você percebe que ele de alguma forma conseguiu diminuir as próprias pupilas para ficar mais parecido com o Bush.

Como já tocamos no assunto, um filme simples pode dispensar a verossimilhança quando quiser, sem nenhum compromisso com a coerência. O Primeiro Ministro pode sair na noite de Natal e bater de porta em porta até encontrar sua antiga assistente, discutir a relação enquanto leva um menino vestido de polvo para uma apresentação escolar e beijar a mocinha justo no momento em que as cortinas do palco se abrem. A mocinha, por sua vez, pode pular em cima do Primeiro Ministro quando, um mês depois, ele volta de viagem. Um escritor e sua faxineira podem se apaixonar ainda que não falem a mesma língua. Um menino de onze anos pode aprender a tocar bateria em duas semanas. Asterix pode convencer César a largar o posto de imperador e viver numa vila com Cleópatra (não é nesse filme, mas é um ótimo exemplo). Alan Rickman pode ser casado e ter filhos.

Um filme simples pode ser detestado. É normal. Mas filmes simples ruins podem ser vistos e revistos sem chatear ninguém, enquanto filmes complicados ruins fazem o espectador querer arrancar os próprios olhos para jogar na tela. E filmes simples bons, como esse, podem fazer de seus espectadores pessoas felizes por horas e horas.

3/5

Descendo do pedestal

Ontem me falaram que meu blog é esnobe. A Raquel, übercomentadora, chegou a dizer que não consegue comentar meus posts, ou melhor, minhas postagens. Mas estou tentando mudar. A primeira providência é escrever textos e frases menores, que é pra todo mundo entender e ninguém parar no meio.

Traduttore, traditore

BAM!

Meu Blogger agora está em português. Eu não crio mais posts, crio postagens. Curiosamente, status continua sendo status mesmo.

Tex Avery style

A próxima vez que eu ler traduttore, traditore em algum lugar, vou dar um tiro na minha cabeça.

Tuesday, May 03, 2005

A queda

Há algumas semanas fui ao cinema com dois amigos, um dos quais estava acompanhado por um grupo de três ou quatro outros amigos, que eu desconhecia. Enquanto outras pessoas do grupo decidiam se compravam ou não alguma guloseima na inflacionada bonbonnière do Cinemark, eu e um dos amigos do meu amigo começou a conversar. Sou um cara tímido, não costumo passar uma boa primeira impressão e costumo falar apenas com os meus conhecidos quando estou num grupo grande; meu namoro me fez melhorar um pouco, mas não muito. De qualquer forma, esse desconhecido em particular foi extremamente simpático: perguntou o que eu fazia, fingiu se interessar pelo meu trabalho, lamentou que minha namorada não estivesse lá. Me deu a impressão de ser um cara muito bacana.

Então entramos no cinema, e o cara bacana se revelou um completo imbecil. Durante os trailers, ele de tempos em tempos gritava comos e estivesse chamando alguém pelo nome de "Leco Leco"; quando o filme começou ele parou com isso, mas continuou conversando, e de vez em quando falava alguma coisa pretensamente engraçada em voz alta. O filme era ruim (Amigo oculto, aquele com o Robert De Niro) e nem valia a pena pedir para ele fazer silêncio. O que não torna sua atitude menos idiota.

O mais espantoso no mal não é até onde ele pode chegar, e sim como ele pode conviver pacificamente com o bem na mente de uma pessoa. Uma pessoa muito simpática na fila do cinema pode se transformar num completo imbecil soltando gritinhos dentro da sala de projeção. E uma pessoa que adora um cachorro e é gentil com sua secretária pode ser um genocida.

A queda é um filme sobre os últimos dias de Hitler, cercado por tropas soviéticas num bunker em Berlim. Aquele monstro que provocou a morte de dezenas de milhões e se orgulhava até o fim de eliminar os judeus do solo alemão é mostrado como um homem, como eu e você (a não ser que você seja mulher). Ele era capaz de ser gentil e terno, era capaz de dar medo, e era capaz de dar pena. Sim, dá pra sentir pena de Hitler quando se vê A queda, e isso é bom pra percebermos que estamos mais próximos dele do que gostamos de pensar. Dizer que ele era um louco, o demo, o anticristo, é subestimar perigosamente a crueldade de que somos capazes.

Teve gente - Wim Wenders e Mario Sergio Conti, por exemplo - que reclamou do respeito com que o filme trata Hitler, como se fosse preciso cuspir na cara de criminosos. O filme trata Hitler com respeito, sim, porque é como um filme honesto de recriação histórica deve tratar seus personagens. Senão vira propaganda, vira Michael Morre. (Nada contra Moore, aliás: filmes divertidíssimos.) Xingar é fácil; tentar entender e representar como aquele homem funcionava é que são elas, e pra isso é preciso respeito, e coragem também.

A morte de Mary Kelly, a última vítima de Jack o Estripador, ocupa um capítulo inteiro de Do inferno, história em quadrinhos escrita por Alan Moore e ilustrada por Eddie Campbell. No apêndice, na nota referente a esse capítulo, Moore fala sobre a psicologia de serial killers em geral e o significado de Jack o Estripador em particular, e termina falando que ao escrever aquele capítulo ele buscou se aproximar ao máximo da mente de um psicopata - e que ele não sabe nem se poderia, nem se gostaria de ir além de onde foi.

Ecos do post anterior, sobre Ian McEwan: como já disse lá, o que me incomoda em The child in time é que o escritor não foi capaz de explorar a fundo o inferno que oferecia ao leitor. Alan Moore e Eddie Campbell foram: lembro-me de desviar os olhos da página quando vi pela primeira vez William Whitey Gull cortando o rosto da sua última vítima. O que se vê na página é repulsivo, mas também redentor: o sadismo transformado em arte, ao mesmo tempo inerme e inquietante. Por um momento podemos achar que passamos a entender melhor como funcionam os serial killers, mas na verdade só passamos a entender melhor nós mesmos. Uma consequência de toda boa obra de arte.

O que vale para Moore e Campbell vale para Oliver Hirschbiegel, diretor de A queda, e Bruno Ganz, que interpreta Adolf Hitler. Eles foram lá, onde ninguém queria ter ido, trouxeram o que acharam, que ninguém quer ver, e nos mostraram com tanto talento que conseguimos transformá-lo, seja o que for, em algo nosso. Podem não ter ido até o fim, mas ninguém vai; foram até onde podiam, e foi o bastante. Um pouco mais de respeito, por favor.

4/5

Amor para sempre

Ok, estou oficialmente assustado com Ian McEwan. O cara é muito, mas muito bom. Reparação, como diz a citação da Economist na contracapa da edição da Companhia das Letras, é daqueles raros romances que de fato merecem ser chamados de obra-prima; O inocente, Cães negros e Amor para sempre chegam perto. The child in time está um pouco abaixo do resto: talvez meu inglês não seja bom o bastante para ler McEwan no original, mas prefiro pensar que o problema estava na estrutura da história, nos desvios que distraem o leitor do sofrimento de um pai confrontado com o desaparecimento de sua filha.

(Não que os desvios não sejam deliciosos. A história de como o protagonista se transformou em escritor de livros infantis meio por acidente, quando seu editor tratou como literatura para crianças o livro que ele escrevera pensando ser literatura e ponto; o acidente de carro na estrada, narrado por McEwan com o detalhismo econômico e preciso que é seu grande trunfo; e, mais relacionado com o tema central do romance, a regressão de um amigo do protagonista, político renomado que se enfurna com a mulher numa casa de campo para viver o sonho de retornar à infância - são todos interessantes, inteligentes e muito, muito bem escritos. Mas a impressão final é que o próprio McEwan ficou com medo de penetrar muito profundamente no inferno por que passou aquele pai. O que não deixa de ser surpreendente, já que o escritor não foi apelidado de Ian Macabre à toa: os comportamentos mais estranhos e os atos mais grotescos são descritos em seu livro com uma calma de dar calafrios. Talvez The child in time seja sobre o inferno hipotético de McEwan - ou, para ser justo, de qualquer pai - e por isso tenha faltado coragem para se enfurnar nas trevas. Digressiono, mas digressionar é bom.)

Os romances de Ian McEwan costumam ter um acontecimento estranho como centro ou ponto de partida: o ataque dos cães em Cães negros, o esquartejamento de um morto em O inocente, a perda da criança em A criança no tempo. O único romance que li do autor em que isso não acontece é Reparação: há um estupro que serve de ponto de virada da trama, mas ele não é descrito. (Aliás, uma das passagens mais impressionantes da obra de McEwan está num conto de Primeiro amor, últimos sacramentos em que o narrador abusa sexualmente de uma menina pequena e a mata. Não falta coragem do escritor ali, não senhor. Talvez falte a alguns leitores. Rapaz, como é bom digressionar.) Em Amor para sempre, o acontecimento estranho está logo no início: um acidente de balão que quatro homens tentam evitar, um dos quais acaba morrendo por excesso de coragem ou lentidão de reflexos. Mas é só o começo.

Já li em mais de um lugar que McEwan é um escritor seguro a ponto de não ter medo de incluir passagens ou situações obviamente simbólicas nos seus romances. O contraste entre a religiosidade de Jed Parry e o cientificismo de Joe Rose é uma dessas situações: a fé do primeiro alimenta sua obsessão, mas a intransigência do segundo não faz nada para combatê-la. Mas, além disso, McEwan é bom o bastante para chegar até o limite do seu próprio estilo, àquele momento em que as metáforas são quase bregas - ou seja, as melhores possíveis. Às vezes escorrega e dá aquele último passo que separa o ridículo do sublime, mas é muito, muito raro. Quase sempre, seu texto é exemplar.

McEwan também sabe que escrever bem não é uma licença para descuidar da história. Em seus romances acontecem coisas, e isso pode parecer uma afirmação estúpida mas não é (ou talvez seja, quem sou eu pra julgar a inteligência do meu texto?): acontecem coisas interessantes, surpreendentes, que atraem o leitor. Em Amor para sempre, a dúvida sobre quem está realmente louco na história vai quase até o fim do livro, e mesmo após ela ser esclarecida ainda restam questões que McEwan responde com uma calma deliciosamente sádica, sugerindo um final feliz num apêndice psicanáltico mas fechando com uma nota sinistra.

(Aliás: por causa do fim, do enredo e da incerteza que dura boa parte da obra, há ecos de Amor para sempre em Bem me quer, mal me quer, filme francês com Audrey "Amélie Poulain" Tautou. Estou exagerando, eu sei.)

Ainda me falta conhecer alguns escritores contemporâneos de renome: nunca li nada de John Updike, de Phillip Roth só o divertido Complexo de Portnoy, e dois exemplos bastam para abreviar uma longa lista. Mas, até prova em contrário, o melhor escritor do mundo atualmente é Ian McEwan, e alguém que o supere merecerá meu respeito.

4/5

Para que serve a economia

Eis um artigo muito estúpido: uma resenha de Freakonomics, livro de Stephen Levitt, jovem economista de sotaque americano e currículo brilhante, famoso pelo trabalho em que mostra a correlação entre aumento do número de abortos e diminuição da criminalidade. Andrew Leonard, autor do artigo, reclama que Stephen se contenta em apresentar os resultados das suas pesquisas, sem discutir suas consequências ou sugerir formas de usá-los para melhorar a sociedade.

Em outras palavras, Leonard não gosta de Levitt porque Levitt é um economista. É isso o que economistas fazem, ou ao menos é o que deveriam fazer: mostrar as consequências de uma ação do governo ou outro agente qualquer, ou, de forma mas geral, investigar o comportamento das pessoas diante de determinados incentivos e as consequências desse comportamento. Dizer que o aumento do número de abortos diminuiu a criminalidade pode ser desconfortável, ou contraproducente, mas nada disso deveria interessar ao economista: se a análise dos dados está correta, seu trabalho está feito. Da mesma forma, por mais triste que seja descobrir que pais que lêem para os filhos não estão ajudando em nada na formação da criança, o que Leonard queria que Levitt fizesse? Esconder a verdade para não tornar os pais relaxados ou desesperançados não me parece uma boa opção.

Uma vez um professor de ciência política da faculdade passou Gladiador em sala. Na discussão depois do filme, ele criticou Maximus por não ter traquejo político no momento em que o imperador o nomeou herdeiro do trono, o que permitiu que o Joaquin Phoenix fizesse aquela bagunça toda. Argumentei que Maximus não tinha por que entender de política: ele era general, tinha que entender de guerra. A culpa era do velho imperador, que não soube prever a reação do seu filho à sua escolha. Tudo isso pra dizer que não se pode acusar um homem de não fazer aquilo que, por escolha ou incapacidade, ele não aprendeu a fazer. Em vez de dizer, por pura birra, que Levitt talvez não seja um economista tão brilhante assim, Andrew Leonard deveria aprender pra que serve a economia.