Clube de leituras - "Crime e castigo"
A ambição de Raskólnikov
É curioso que o Alexandre, criador desse clube de leituras virtual, esteja terminando seu texto sobre a ambição no mesmo dia em que abre as discussões sobre Crime e castigo, de Fiodor Dostoiévski. O evento central do romance - o assassinato de uma usurária e sua irmã - é motivado justamente pela estranha ambição do protagonista da obra, Ródion Románitch Raskólnikov.
Ex-estudante de direito, Raskólnikov desenvolve uma teoria que divide as pessoas em dois tipos, ordinários e extraordinários. Ordinários são as ovelhas do rebanho, não necessariamente estúpidos mas incapazes de realizar mudanças. Extraordinários são os pastores, os que ditam os rumos e alteram as regras. Pessoas extraordinárias muitas vezes se vêem forçados a cometer um crime para alcançar seus objetivos, e não hesitam em fazê-lo - e não se pode culpá-las: apenas quebrando as leis antigas é possível instituir as novas.
A ambição de Raskólnikov o faz julgar-se uma pessoa extraordinária, mas ele é um ex-estudante miserável que só se sustenta em São Petersburgo graças aos rublos que a mãe vez por outra lhe envia. Para voltar à faculdade e iniciar sua ascensão (social, intelectual, cultural), Raskólnikov decide matar Aliena Ivánovna e roubar seu dinheiro. O motivo do crime, porém, é um pouco menos direto, mais confuso: ele quer provar para si mesmo sua capacidade de infringir a lei se necessário; quer provar para si mesmo que é extraordinário. Tanto é assim que Raskólnikov deixa para trás a maior parte do dinheiro da sua vítima e sequer se preocupa em verificar quanto roubou.
Raskólnikov tem alguns traços de gênio incompreendido: lamenta sua pobreza, o estado do qaurto em que habita e de suas roupas, mas parou de dar aulas e não aceita a proposta de seu amigo Razumíkhin para trabalhar numa tradução. A mistura de pobreza e ambição faz com que ele distorça a sua própria teoria: ele não é uma pessoa extraordinária quebrando uma lei para atingir seu objetivo, é uma pessoa cometendo um crime para se considerar extraordinária.
A tragédia pessoal de Raskólnikov é não fazer jus à sua própria idéia de gênio: após o assassinato ele tem febre, delira, desmaia, pensa em se matar, volta à cena do crime, desperta suspeitas na polícia e no juiz de instrução Porfiri Pietróvitch. A tragédia maior retratada pelo livro é a incapacidade de Raskólnikov de superar sua teoria, seu desgosto e seu ressentimento e perceber que cometeu um crime hediondo e mesquinho na sua simplicidade, e merece o castigo que virá.
O fim
A redenção de Raskólnikov no fim de Crime e castigo é decepcionante. Ainda no último capítulo do romance, o criminoso, já preso na Sibéria, lamenta sua decisão de se entregar, julgando os oito anos de trabalho forçado por que terá que passar inúteis, um desperdício de vida. Antes, ele recuara diversas vezes no momento da confissão. De repente, uma doença sua, outra da sua companheira - a angelical Sônia Semeónovna - e lá estão eles, de mãos dadas na Sibéria.
Dostoiévski faz a parte mais difícil ao pegar um personagem estranho, misantropo, arrogante e egoísta como Raskólnikov e transformá-lo num protagonista cativante, por quem o leitor torce mesmo enquanto ele faz as maiores grosserias e prova só pensar em si mesmo. A partir daí bastava cumprir a promessa do título e punir exemplarmente o criminoso, não lhe dar uma saída fácil e uma pena reduzida. O epílogo do livro é totalmente estranho a tudo que o precedeu - organizado e resumido em oposição ao extenso caos das seis partes do romance. É um final feliz forçado. Talvez não muito feliz, mas nesse livro qualquer fim que não seja inegavelmente trágico é alegre.
Nesse sentido, a verdadeiro maçã (mais explicações aqui) é A sangue frio, romance/reportagem de Truman Capote. Na história verdadeira do assassinato da família Clutter não há espaço para redenção: os assassinos, Perry Smith e Dick Hickock, são condenados à forca, ainda que haja dúvidas sobre a sanidade mental dos dois. Também eles cometeram seu crime por uma ninharia (cerca de 50 dólares, de acordo com este resumo do livro) e também para eles o crime era mais uma afirmação de superioridade do que uma forma de enriquecer.
(Outro tomate, embora um pouco mais distante da idéia de Dostoiévski, é o conto O assassinato, escrito por Tchekhov em 1895. Iákov Ivânitch mata seu primo Matviei, que morava com ele e sua família e criticava constantemente sua religiosidade excessiva. O crime acontece num impulso, bem diferente do ato calculado pelos criminosos dos livros de Dostoiévski e Capote; mas o castigo, para Iákov e sua família, é tremendo. No fim do conto não há nenhum resquício de redenção, apenas um carregamento de carvão que não acontece e um grupo de detentos que sai da prisão numa noite fria para nada.)
O idiota
Talvez seja por causa dos desfechos dos romances que prefiro O idiota a Crime e castigo. O príncipe Míchkin, protagonista do primeiro, é de certa forma o oposto de Raskólnikov - a contracapa da edição da 34 o descreve como uma "mescla de Cristo e Dom Quixote". Sua bondade e ingenuidade conquistam Nastácia Filíppovna, para desespero de Rogójin, seu antigo amante. Quem não quiser saber o fim do livro não leia o próximo parágrafo (nem a orelha da edição da 34).
Mas não há final feliz para o trio de protagonistas deste romance. Rogójin mata Nastácia após seu casamento com Míchkin - que, poço de bondade, termina acariciando o assassino à espera da polícia, e retorna ao estado severo de idiotia de que havia saído antes do começo do romance. Aqui Dostoiévski leva até o fim as consequências dos atos e caracteres (?) de seus personagens, criando uma situação tão inverossímil quanto brilhante. Em Crime e castigo, ele tira o pé do freio.
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Por enquanto é isso. Há mais para ser dito sobre o livro, mas minhas outras idéias não têm muita relação com o que está acima e o post já está grandinho. Depois escrevo mais.